Em Setembro de 1835, a Academia de Medicina de Lyon declarava que andar de comboio, uma inovação assombrosa para a época, iria provocar nos passageiros doenças nervosas, disenteria, afecções histéricas, síndromas epileptiformes, inflamações da retina, bronquites e aderências da pleura. Concluía com algum drama que “a ansiedade dos perigos constantemente corridos manterá os viajantes num perpétuo estado de alerta e será o prólogo de afecções cerebrais. Para uma mulher grávida, toda a viagem em caminho de ferro arrastará infalivelmente um aborto com todas as suas consequências”.

Sabemos hoje que o comboio mudou o mundo tal qual se conhecia. Um bilhete de comboio, acessível à maioria das bolsas, acabou com a condenação antiga de nascer, viver uma vida inteira e morrer no mesmo lugar.

O comboio trouxe consigo mudanças poderosas; até no regime alimentar de quase todos. Produtos vindos de muito longe chegavam às bancas dos mercados e feiras a preços acessíveis. Mesmo a ementa dos mais pobres ficou mais variada e rica. A robustez física das populações melhorou significativamente e a mortalidade diminuiu a olhos vistos. O comboio acabaria por contribuir poderosamente para um aumento demográfico, como o mundo nunca antes vira e que não parou até hoje.

O perigo do joio

Não é possível esquecer este exemplo como uma boa ilustração de como a história nos pode ajudar a perceber o lugar que as “novas” tecnologias devem ocupar nas nossas vidas e nas escolas em particular. E o tema está incandescente.

Vai para aí um vendaval mediático sobre o que fazer com os telemóveis e os nossos miúdos. Como de costume, ninguém pergunta nada aos professores do ensino básico e secundário que são justamente aqueles que mais sabem o que dizer sobre o assunto. São eles que podem explicar direitinho, sem peneiras nem relativismos, o valor que estas tecnologias acrescentam ao acto de aprender coisas e que prejuízos trazem aos nossos miúdos.

Há que reconhecer que a escola portuguesa, pública como privada, tem sido um espaço com uma formidável capacidade de resistência à mudança. Mas o interessante é tentar perceber porquê. Ela tem sido porque é assim que a escola deve ser. Feliz e infelizmente, a escola não anda a correr atrás das modas e das tendências em voga. Ela resiste à mudança e ainda bem que o faz, porque numa escola, numa sala de aula, só deve entrar quem vier por bem. Ora, o bem de uns nem sempre é o bem de todos. Como de costume separar trigo do joio ainda leva algum tempo

No 8º ano e não sabe ler

As epidemias pedagógicas e os desmazelos educativos são tão vazios e desacreditados que o mais elementar sentido de responsabilidade impõe aos professores que tomem juízo dentro das suas salas de aula e resistam, prudentemente, à mudança. Poucos terão verdadeira noção da quantidade de manias e fixações pedagógicas que há décadas invadem as salas de professores. Obsessões que empurram os professores a “andar rapidamente e em força” para uma qualquer nova guerra colonial que alguém sempre inventa.

Há dias, uma aluna do 8º ano confessava baixinho, a sós, que não sabia ler nem escrever. Como sobrevive um professor a isto? Enquanto discutimos telemóveis temos estas realidades a bater-nos à porta. E nós com tanta falta de tempo.

A voragem das ondas e das modas pedagógicas, os expedientes para torcer estatísticas, os numerosos dispositivos de camuflagem, a dissipação orçamental em frivolidades, a energia despendida ao longo de anos a tentar fazer tranças à realidade conduziu esta menina a um beco sem saída.

Não há como negá-lo: temos miúdos sem abrigo nas nossas escolas. Vidas reais mergulhadas em relatórios e certidões, processos e metas e objetivos e medidas educativas e planos individuais e adequações curriculares e apoios personalizados e percursos e currículos específicos; milhares de frases escritas apenas para poder carregar uma miúda ao colo até ao 8º ano e vê-la cair num aviltamento pessoal profundo que a obriga a desembuchar, junto às lágrimas, que não sabe ler nem escrever.

Enquanto perdemos tempo e dinheiro com bagatelas de contrafacção pedagógica perdemos pessoas e vidas reais no processo. E enquanto nos iludimos com estas sombras de Platão, mais tempo e energia se desperdiçam para resolver verdadeiros problemas.

Quando a cabeça não tem juízo, a escola é que paga

Todos quantos tiveram uma infância minimamente feliz sonharam ter um telemóvel. Se possível, no pulso. Todas as séries de ficção científica prometiam essa prodigalidade. E nós, miúdos de curiosidade esbugalhada, fingíamos que não faltava muito tempo até que chegasse o futuro. Agora que o futuro chegou, ao invés de o admitir como nosso, decidimos endoidecer como se fôssemos galinhas sem cabeça a correr no pátio desses mesmos sonhos.

Sejamos claros. É inadmissível que se tente proibir os telemóveis de entrar numa escola. Era só o que mais faltava. E é ainda mais excêntrico que se procure uma idade certa para interditar ecrãs e se tente concluir que os mais novos devem ser as vítimas prioritárias do embargo. Pois bem, se quereis começar a banir ecrãs, começai pelos adultos.

Especialmente os que sejam pais ou educadores. É que, se nos deixarmos de modas, recordaremos que o exemplo vem, habitualmente, de cima. Já agora, “cima” aqui, significa “pais”. Os miúdos emulam exemplos. Imitam os pais. Se um pai não lê, não passeia ou não lava os dentes, é muito provável que ler, passear e lavar os dentes não se torne uma preferência dos seus filhos.

Se uma mãe passa o tempo em selfies, a instagramar a paciência aos outros e a empilhar likes, dedicando-se à pesca de louvores e à pirataria de erudições alheias é de prever que o seu filho aprenda que a vida talvez não seja muito mais do que isso. E depois, claro, é vê-los, sozinhos, isolados nos corredores das escolas, despojados de quase tudo o que importa, desabitados de sonhos, a definharem nos seus ecrãs.

Entretanto, como acha a sociedade que se deve responder a este flagelo? Proibindo os telemóveis de entrarem nas escolas. Não há nada como virar o volante para longe da responsabilidade de quem realmente a tem. Quando a cabeça não tem juízo, a escola é que paga. Não há volta a dar: os pais precisam de passar muito mais tempo de genuína diversão com os seus filhos sem ecrãs. Ajudá-los, com o seu exemplo, a viver sem dependências de nenhuma ordem.

A tosquia tecnológica

No filme “A million ways to die in the West”, do enorme Seth MacFarlane, há uma cena em que um miúdo passa a correr com uma vareta na mão a jogar ao arco. Dois adultos reparam no miúdo e um deles diz:

“- Ultimamente, tenho visto por todo o lado muitos garotos a jogar ao arco.

- É. Eu também. Aquilo deve fazer-lhes mal ao cérebro.

- Sim, sim, retarda-lhes a capacidade de atenção. Li num artigo do jornal.

- Pois foi, eu também li. Eles perdem o poder de inovar porque passam o dia todo a olhar para um pau e um arco.

- Yep!”

Este diálogo é bem a ilustração cirúrgica do que vivemos hoje em dia. Em matéria de educação, acotovelamo-nos com bagatelas, sempre em trânsito até à bagatela seguinte.

Recomendar que se dêem telemóveis estúpidos (dumbphones) aos mais pequeninos para os proteger dos ecrãs é uma insanidade. Devíamos todos ocupar-nos a tentar livrar estes miúdos da escassez e muitas vezes protegê-los da sua própria família.

A escola deve saber resistir a estes alarmes dúbios. A escola sabe que um smartphone é um prodigioso auxiliar de aprendizagem. É imperativo que a escola continue a explicar como se deve utilizá-lo com propósito e serventia. Uma escola luddita – que demoniza a máquina – é uma escola em subtil negação de si mesma. Não há hoje um único restaurante onde um pai não tente calar o seu filho impingindo-lhe um ecrã na frente do nariz. Todos assistimos a isso. O telemóvel converteu-se numa mordaça familiar. É uma chupeta digital.

A solidão treina-se em casa. Não são as escolas que compram telemóveis aos miúdos. São os seus pais. E fazem-no ao mesmo tempo que tentam proibir telemóveis de entrar nas escolas. É uma gritante incoerência. As escolas não conseguem competir com isto. As escolas precisam de telemóveis porque a vida precisa de telemóveis. Sugerir que a escola se converta numa espécie de masmorra onde se prescinde do que a tecnologia tem para lhe proporcionar é insuportável. Recomendar que as nossas escolas vivam em modo de avião é insultuoso da dignidade da função educativa.

Uma escola sem rede, surda e muda e sem vibração. Reservar esta tosquia tecnológica para os mais pequeninos é especialmente perturbador. Implica que todos aceitemos que já não é preciso que os pais passem muito tempo livre com os seus filhos; pegar numa bicicleta ou ir de comboio até à praia, até ao jardim, até ao parque, longe de ecrãs e longe de telemóveis. E que nestes passeios, os mais pequeninos, justamente por serem os mais pequeninos, viajam em terceira classe.