Um novo estudo analisou pelos nos dentes danificados de dois leões “devoradores de homens” que mataram pelo menos 28 pessoas na região de Tsavo, no Quénia, em 1898. Os resultados deste estudo demonstram como a análise do ADN antigo pode desvendar segredos há muito escondidos e uma compreensão sobre comportamentos predatórios invulgares, que desafiam a norma.

Em 1898, dois leões machos sem juba aterrorizaram um acampamento de construtores de pontes no rio Tsavo, no Quénia. Os leões entravam sorrateiramente no acampamento à noite, atacavam as tendas e arrastavam as suas vítimas. Estes “devoradores de homens” mataram pelo menos 28 pessoas antes de serem abatidos pelo tenente-coronel John Henry Patterson, engenheiro civil responsável pelo projeto. Anos mais tarde, em 1925, Patterson vendeu os restos mortais dos leões ao Museu Field de História Natural de Chicago.

J.H. Patterson com um dos leões sem juba do Quénia
J.H. Patterson com um dos leões sem juba do Quénia Field Museum of Natural History Chicago

A história foi contada pelo próprio Patterson no livro The Man-Eaters of Tsavo and Other East African Adventures e inspirou filmes como The Ghost and the Darkness de 1996, alimentando a lenda dos "leões devoradores de homens". Não é vulgar acontecer, mas será a exceção que confirma a regra?

Os dentes centenários destes leões estão agora a revelar novos segredos, não só se de facto comiam humanos, mas também pistas sobre o porquê.

Novas técnicas revelam segredos escondidos nos dentes

Utilizando os recentes avanços nas técnicas de sequenciação e análise de ADN antigo e degradado, cientistas dos EUA e do Quénia investigaram pelos de animais presos nos dentes dos leões. Informações que vão não só ajudar a verificar a veracidade desta história, mas também o que poderá ter levado estes predadores selvagens a comportarem-se de forma tão invulgar.

Os dentes dos leões foram danificados ao longo da sua vida
Os dentes dos leões foram danificados ao longo da sua vida Field Museum of Natural History in Chicago

No novo estudo, publicado na revista Current Biology, os investigadores do Museu Field Thomas Gnoske e Julian Kerbis Peterhans colaboraram com cientistas da Universidade de Illinois Urbana-Champaign, da Universidade de Nairobi e do Museu Nacional do Quénia numa análise mais aprofundada dos pelos extraídos dos dentes partidos dos leões.

Uma dieta de girafas, órix, piva, gnus, zebras e... humanos

Zebras e gnus
Zebras e gnus Michael Jeffords e Susan Post

Foram examinadas amostras de pelos individuais e tufos extraídos dos dentes dos leões, recorrendo à microscopia e à genómica para identificar algumas das espécies consumidas pelos leões.

Primeiro, tiveram de confirmar a idade do cabelo, explica a coautora Alida de Flamingh, bióloga conservacionista da Universidade de Illinois Urbana-Champaign.

“Investigámos se o ADN tinha os padrões que são normalmente encontrados no ADN antigo”, explica Alida de Flamingh .

Depois de as amostras terem sido verificadas, os autores focaram-se no ADN mitocondrial (ADNmt) - nos humanos e noutros animais, o genoma mitocondrial é herdado da mãe e pode ser utilizado para rastrear as linhagens matrilineares ao longo do tempo. Estudos anteriores descobriram que a estrutura do cabelo preserva o ADNmt e protege-o da contaminação externa.

“E como o genoma mitocondrial é muito mais pequeno do que o genoma nuclear, é mais fácil reconstruí-lo [e identificar] potenciais espécies de presas”, acrescenta de Flamingh.

Com mais de 100 anos, os pelos não estavam em ótimas condições, mas ainda tinham ADNmt utilizável. E revelaram ser um tesouro de informações.

“A análise do ADN dos pelos identificou girafa, humano, órix, piva [antílope africano], gnu e zebra como presas, e também identificou pelo originário dos leões”, afirmam os cientistas. E de humanos.

Leões irmãos com um comportamento invulgar

Descobriu-se que os leões partilhavam o mesmo genoma mitocondrial herdado da mãe, logo eram irmãos. O seu ADNmt revelou também que eram originários do Quénia ou da Tanzânia.

Um casal de leões sem juba que vivem hoje na região de Tsavo, Quénia
Um casal de leões sem juba que vivem hoje na região de Tsavo, Quénia Michael Jeffords and Susan Post

Antes de morrerem, os leões comeram pelo menos duas girafas e uma zebra da região de Tsavo.

A descoberta do ADNmt dos gnus foi surpreendente porque a população de gnus mais próxima no final da década de 1890 estava a cerca de 80 quilómetros de distância, disseram os investigadores. No entanto, coincide com os relatos de J. H. Patterson de uma prolongada pausa nos ataques, talvez os leões tenham deixado a região para caçarem gnus antes de voltarem a atacar o acampamento dos construtores perto do rio Tsavo.

A ausência de ADN de búfalo e a presença de apenas um único pelo de búfalo – identificado por microscopia – foi surpreendente, disse Flamingh. “Hoje em dia, búfalo é a presa preferida dos leões de Tsavo”.

Talvez esteja aqui uma pista por que razão estes leões começaram a caçar humanos.

Patterson nunca registou ter visto búfalos ou gado indígena no seu diário. A peste bovina, uma doença viral dos ungulados, tinha sido introduzida a partir da Índia em África anos antes. Matou búfalos e gado em toda a região na década de 1890, possivelmente obrigando alguns leões a encontrar novas presas.

Genoma dos cabelos de humanos

O genoma mitocondrial do cabelo humano tem uma ampla distribuição geográfica e os cientistas optaram por não realizar análises mais detalhadas para identificar possíveis vítimas neste estudo.

“Pode haver descendentes ainda hoje na região e para praticar uma ciência responsável e ética, estamos a utilizar métodos baseados na comunidade para alargar os aspetos humanos do projeto maior”, explicam.

Estas descobertas são importantes para perceber que é possível extrair dados preciosos de crânios e cabelos antigos, disseram os investigadores.

“Agora sabemos que podemos reconstruir genomas mitocondriais completos a partir de fragmentos únicos de pelos de leões com mais de 100 anos de idade”, disse de Flamingh.

Havia milhares de pelos incrustados nos dentes dos leões, compactados ao longo de anos, disseram os investigadores. Análises adicionais permitirão aos cientistas reconstruir, pelo menos parcialmente, a dieta dos leões ao longo do tempo e talvez identificar quando começou o hábito de atacar humanos.