As aulas estão de regresso, e o debate sobre uso de telemóveis em ambiente escolar também. Sendo recorrente, a questão não tem resposta simples e taxativa - e nalguns casos, é o próprio estatuto do professor que tem de se adaptar à chegada de tecnologias que funcionam como fontes de saber alternativas.

O professor não está a lutar contra o Google. Também seria uma luta perdida. O que acontece é que o professor tem o Google como ferramenta de apoio para o seu trabalho e para as aprendizagens do seu aluno”, refere Neuza Pedro, professora e investigadora do Instituto de Educação da Universidade de Lisboa, em entrevista ao podcast Futuro do Futuro.

Neuza Pedro defende a autonomia das escolas para autorizar ou proibir o uso dos telemóveis
Neuza Pedro defende a autonomia das escolas para autorizar ou proibir o uso dos telemóveis José Fonseca Fernandes

Com o início do ano letivo a chegar, o Movimento Menos Ecrãs, Mais Vida solicitou ao Ministério de Educação a limitação ou a proibição de uso de telemóveis em cenário escolar. Neuza Pedro considera que as escolas devem manter a autonomia de proibir ou autorizar o uso de telemóvel, mas lembra que a proibição total do uso de telemóveis também pode ter efeitos indesejados.

“Precisamos de educar as crianças para o uso dos telemóveis, mas temos as escolas a viver movimentos contrários de levar a que os equipamentos móveis sejam removidos do seu interior”, lembra a investigadora que tem carreira feita em inovação educativa e na articulação de tecnologias em ambiente educativo.


A resposta pode levar a crer que Neuza Pedro é a favor do livre uso de telemóveis em ambiente escolar, mas a investigadora apenas pretende alertar para a necessidade de definir momentos e cenários em que o telemóvel ou o smartphone podem e até devem ser usados nos estabelecimentos de ensino.

“Se tirarmos os telemóveis por completo do contexto escolar, estamos a não preparar as nossas crianças e jovens para utilizá-los produtiva e pedagogicamente. E estamos também a não prepará-las para saberem ser capazes de não utilizar estes equipamentos, ou seja, de regular a necessidade de os usar e também regular a capacidade de saber não usá-los”, explica.


Neuza Pedro confirma que o uso dos telemóveis por “jovens em idade muito tenra” pode revelar-se “arriscado”. E diz mesmo que “normalmente a partir dos 13 anos de idade é que se entende que o uso de smartphones estará mais apto a ser pedagogicamente adquirido”.

A investigadora também não renega os efeitos nefastos que o uso de telemóveis pode ter nos recreios, que ficam silenciados e perdem a dinâmica típica das relações sociais, quando dezenas de crianças passam o tempo livre à frente de pequenos ecrãs em vez de correrem, brincarem ou pregarem partidas.


“Não estamos a falar dos recreios, não estamos a falar dessa dimensão mais lúdica, mais de relação social, onde efetivamente as nossas crianças precisam de adquirir outro tipo de competências”, esclarece Neuza Pedro, sobre uma potencial exceção que terá de ser acautelada para o uso dos telemóveis nas escolas.

No entender da investigadora, a limitação do uso dos telemóveis nos recreios poderá não se adequar à sala de aula. Até porque todas as crianças de hoje vão acabar por crescer com telemóveis por perto – e nalguns casos a escola pode revelar-se mesmo o único suporte de literacia digital, que ensina a usar de forma mais saudável e produtiva.

“Faz sentido as escolas preverem que é preciso educar as crianças para usar e para não usar este tipo de equipamentos e, consequentemente, não podemos tirá-los do contexto escolar”, alerta. “Porque se não acontecer nas escolas (a preparação das crianças sobre o uso de telemóveis), estamos a deixar que isso aconteça na esfera familiar”, refere ainda, sem deixar de lembrar que há “famílias muito pouco preparadas para educar as crianças para o uso desta tecnologia”.


“Temos dados recentes que mostram que cerca de 45% da realidade Europeia na sua média, entre os 14 e os 74 anos de idade, não têm um nível de competência básico do ponto de vista da literacia digital”, descreve ainda a investigadora sobre a potencial incapacidade de pais e encarregados de educação para preparar os mais novos para o uso de um telemóvel.

Sobre uma hipotética diretiva que, no futuro, venha aplicar a proibição do uso de telemóvel em todas as escolas, Neuza Pedro não tem dúvidas: “Faz sentido serem as escolas a definir exatamente o que acontece dentro das escolas. A decisão política é maioritariamente alicerçada em ideologia, muito pouco naquilo que é o saber constituído sobre a realidade escolar. Quem tem algum saber constituído sobre o assunto, sobre a sua própria realidade escolar são as escolas e, portanto, deixe-se às escolas aquilo que é da responsabilidade das escolas”, sublinha a investigadora.

Apesar de admitir o uso do telemóvel em sala de aula, Neuza Pedro lembra que essa alternativa não pode ser aplicada apenas pelo facto de não haver outro tipo de equipamentos. “Quando colocamos o uso do telemóvel em contexto escolar, estamos a partir do pressuposto que as escolas não têm os computadores adequados em nível suficiente e com a atualidade que nós gostaríamos que tivessem enquanto instituição, e estamos a usar estes equipamentos para substituir os computadores. E isso não é a solução adequada”, responde a investigadora.


Em resposta aos desafios que o podcast Futuro do Futuro costuma colocar aos entrevistados, Neuza Pedro trouxe um som produzido depois do famoso “toque de saída” das aulas e ainda uma fotografia de um espaço educativo de uma escola de Melbourne, Austrália, que põe os alunos a circular, em vez de seguir a configuração tradicional, com filas de mesas e carteiras para os vários os alunos se sentarem.


Foto de uma sala de aula de uma escola de Melbourne, na Austrália, que Neuza Pedro trouxe para o podcast Futuro do Futuro
Foto de uma sala de aula de uma escola de Melbourne, na Austrália, que Neuza Pedro trouxe para o podcast Futuro do Futuro DR

Neuza Pedro admite que o “toque de saída” que trouxe para o Futuro do Futuro até pode ser reconfortante porque dá a noção de que tudo segue de acordo com as rotinas, mas lembra que a sociedade de hoje é bem diferente daquela em que os mais velhos cresceram.

“Precisamos que os pais ganhem noção de que este modelo de escola, que para eles, do ponto de vista sonoro aqui foi muito reconfortante, já não serve para as crianças de hoje e não serve para aqueles que serão os trabalhadores de amanhã. Não serve porque a sociedade pede hoje aos futuros trabalhadores um conjunto de competências que não pediu aos seus pais nem no nível de intensidade minimamente próximo daquele que vai ser pedido a às crianças e aos jovens de hoje”, responde a investigadora.


Tiago Pereira Santos

Hugo Séneca conversa com mentes brilhantes de diversas áreas sobre o admirável mundo novo que a tecnologia nos reserva. Uma janela aberta para as grandes inovações destes e dos próximos tempos.