Quando se pensa no surgimento de uma ditadura, pode vir à cabeça a imagem de um grande golpe, um acontecimento brusco, que leva a uma rotura com a democracia. Mas a História diz que não tem sido esse o caminho. Frequentemente, são mesmo os próprios regimes democráticos que favorecem a sua queda e a ascensão do autoritarismo.

Mesmo ao falar num golpe de Estado, ele “é sempre levado a cabo pelas forças armadas, por uma instituição subordinada ao governo democrático e ao sistema constitucional”, nota o investigador Arturo Zoffmann Rodriguez, que acaba de receber a primeira bolsa europeia para estudar a queda das democracias na Europa.

A bolsa, no valor de 1,5 milhões de euros, é atribuída pelo Conselho Europeu de Investigação (European Research Council) e vai permitir ao investigador do Instituto de História Contemporânea da NOVA FCSH coordenar uma investigação profunda sobre o tema durante os próximos cinco anos.

Arturo Zoffmann Rodriguez, que no passado se tem dedicado a temas como os sindicatos de extrema-direita ou os impactos da revolução russa no movimento anarquista, diz que estes trabalhos anteriores o fizeram acostumar-se a ver a realidade "pelos olhos do Estado” (recorrendo aos aquivos governamentais e policiais), o que o fez reparar na importância do aparelho repressivo. Agora, quer perceber como é que os próprios Estados democráticos contribuíram para o enfraquecimento das democracias e o aparecimento desses regimes repressivos.

Através das próprias práticas do Estado liberal, as suas práticas repressivas, o próprio Estado foi minando a democracia”, defende o investigador

"Todas as Constituições têm leis que contornam os direitos democráticos"

Arturo Zoffmann Rodriguez defende que “os governos democráticos não são inocentes” no aparecimento de regimes ditatoriais – e aponta como exemplo disso mesmo o caso de Portugal (um dos oito países que vai analisar nesta investigação, juntamente com Espanha, Itália, Grécia, Alemanha, França, Inglaterra, Checoslováquia).

A Primeira República Portuguesa ativou muitas vezes o estado de sítio . L evou as tropas para a rua para combater greves , revoltas populares e protestos. I sso criou um ambiente autoritário e contribuiu par a espalhar ideias antidemocráticas , comen t a o investigador.

E quem pensa que esta é uma realidade datada, coisas do passado, desengane-se. São mecanismos que, alerta Arturo Zoffmann Rodriguez, continuam a ter respaldo nas constituições atuais e a ser ativados pelos governos dos dias de hoje.

“T odas as Constituições , até ao s n ossos d ias , incluem leis e ferramentas legais p a ro o governo contornar os direitos democráticos básicos , defende.

O paradigma da pandemia

Não é preciso, sequer, puxar muito pela memória para recordar a aplicação legal destas medidas antidemocráticas. Basta lembrar o caso recente da pandemia de Covid-19, há quatro anos, quando uma série de direitos e liberdades foram restringidos, em nome da segurança e da saúde pública. Esse, reconhece o investigador, foi mesmo o primeiro estímulo para a ideia desta investigação.

Eu não tinha pensado muito nestas questões, bom, até as ter na minha cara!” , assume.

Durante a crise pandémica, as restrições a liberdades e direitos tidos como garantidos foram aplicadas praticamente em todos os países, constata Arturo Zoffmann Rodriguez.

“Tudo isso gera uma dinâmica própria que acaba tornando-se contra o próprio regime democrático” , sublinha.

É, por isso, tempo de fazer a questão que elimina o “elefante na sala”: poderia Portugal - fosse outra a configuração política nacional, na altura, com uma presença mais destacada da extrema-direita – ter perdido a sua democracia, durante a pandemia?

“É possível”, admite Arturo Zoffmann Rodriguez.

Ainda assim, o investigador está mais interessado em navegar as “zonas cinzentas” e perceber as características democráticas que se perdem nestes processos, mesmo que não tenha sido instituído um novo regime ditatorial.

M uitos direitos básicos da democracia, muitos mecanismos do sistema constitucional tradicional, têm sido minados e são praticamente irreconhecíveis. N ão é só olharmos a democracia e a ditadura, mas também a ponte entre os dois sistemas” , explica.

O caso dos protestos pró-Palestina

Arturo Zoffmann Rodriguez considera que “estamos cada vez mais acostumados a ver os nossos governos, muitas vezes no nome da democracia, da Constituição, da segurança pública, a contornar ou até ignorar direitos democráticos, por exemplo, o direito ao protesto.

Apresenta um exemplo ainda mais recente do que o da pandemia de Covid-19, relacionado com a questão do direito à manifestação: a questão da ofensiva israelita na Palestina.

O investigador destaca a repressão das manifestações em solidariedade com a Palestina, que tem sido aplicada em democracias europeias como o Reino Unido ou a Alemanha.

“Isto está a gerar um clima bastante preocupante e só temos de imaginar como é que aproveitaria esta legislação e este tipo de práticas um governo da extrema-direita alemã, chegando ao poder e vale a pena sublinhar que, de facto, venceu as últimas eleições regionais no país.

Arturo Zoffmann Rodriguez sublinha, por isso, a importância de, com este estudo, analisar social e politicamente os estados de exceção, olhando também para o modo como a polarização tem influenciado o aparecimento dos regimes ditatoriais.

E, sublinha, o estudo da História tem, invariavelmente, uma repercussão nos dias de hoje.

“Um dos motivos que pelos quais o meu projeto foi escolhido foi precisamente a relevância que este estudo da crise da democracia há cem anos tem para os nossos dias, onde também as democracias estão sob uma grande pressão e muitos riscos”, sustenta o investigador.

A desigualdade, a frustração de uma faixa muito ampla da população com um sistema,... Há paralelos muito significativos com a nossa época", conclui.