No dealbar do quinto minuto de jogo, com bastante fita rolada de maior protagonismo de quem vestia de amarelo, Portugal enfim ameaçou com um arrepio de verdade a baliza do Cazaquistão, confiando num momento pouco futsalesco. Com Pany Varela a forçar a sua corcunda, uma mão posta na bola, bateu um lançamento lateral para a gadelha descolorada de Tomás Paçó, na área, cabeceá-la a rasar o poste esquerdo. Bola no ar, testa na bola, um certo perigo inusitado.

Até então, tinham sido os cazaques a fomentar o barulho no pavilhão de Tashkent, capital do Usbequistão colada à fronteira com o Cazaquistão, geografia amiga de uma romaria de nacionais do país vizinho que deram à rena um ruído de animosidade ouvido a cada posse de bola portuguesa. Era mais uma dificuldade adicionada ao desconforto que a seleção sentiu ao longo da primeira fatia de 20 minutos, na qual jamais exerceu um período de continuada superioridade sobre do malandro adversário.

A malandrice do Cazaquistão vinha, à maior, de Leonardo de Melo Vieira Leite, ou Higuita para os amigos do futsal. O guarda-redes que é bem mais do que isso e usufrui de uns pés comandados por esperteza monstra está com 16 épocas feitas no país e dispensa à equipa a necessidade de puxar um jogador de campo quando quer montar uma situação de cinco para quatro no ataque. Com argúcia nas sapatilhas e ousadia nas intenções, cedo Portugal deixou de conseguir reduzir a sua influência (fechando linhas de passe) e foi sofrendo com a sua capacidade em encontrar o jogador livre quando alguém caía no engodo de lhe sair um pouco ao caminho.

Com as joelheiras postas, as proteções nos cotovelos, foi a ser o que a função primeiramente lhe pede que seja que Higuita, no literalmente último segundo da primeira parte, bloqueou com o peito um remate à queima-roupa de Afonso Jesus, na área, quiçá a melhor oportunidade de Portugal marcar além do tal cabeceamento. Aí a seleção já era perseguidora como nunca o fora neste Mundial, culpa do golo sofrido, aos 10’, por um castigo de simplicidade: de um lançamento lateral, dois jogadores do Cazaquistão executaram bloqueios à entrada da área, saiu o passe e Yessenamanov rematou a bola ao canto interior da baliza de Edu, que ficou a refilar com a passividade.

Anvar Ilyasov - FIFA

Os portugueses, entretanto, foram mais rematadores (33 contra 12), tentaram por for e por dentro, com um pivô declarado (Zicky Té), um assim-assim (Érick Mendonça) e até sem quem pertencesse de facto à posição, tentando baralhar as atenções dos cazaques. Mas, uma e outra vez, os remates ou nem sussurrava à baliza ora eram disparados demasiado à distância enquanto as jogadas pouco perigo geravam devido à agressividade posta pelos adversários em cada lance. Em pouquíssimas um português se livrou do marcador direto, de quem o tentava roubar, do cazaque que o vigiava. A seleção carecia de um golpe de asa, algum rasgo de diferença.

Essa divergência esteve no dócil calcanhar de Zicky, um subtil toque cofiado no relâmpago de bola vinda a abrir de um livre batido por Bruno Coelho. Foi esse desvio, quase instintivo, dado ao trovão rasteiro que tirou a seleção nacional da primeira situação de desvantagem no marcador que conheceu no Mundial e deu um safanão na partida.

Para o bem, que se traduziu no maior finca-pé de Portugal, mais mandão e a prolongar a duração das posses de bola até desencantar forma de o último passe rondar a baliza ou acabar em remate; e para o mal, um mal relativo, que foi transfigurar o que se via e dar um jogo com mais paragens, mais faltas e menos ação contínua. O tempo fez a seleção prevalecer no volante, a fartura de opções no banco para ir trocando os corpos e a qualidade se manter afiada era incomparável à do Cazaquistão, a quem o cansaço gradual de correrem atrás dos portugueses carcomia o esforço.

Os último cinco, seis minutos escancararam essa evidência com um vendaval de remates perigosos de Portugal. Já sem Douglas, o esgotado tanque de troncos nas pernas nascido no Brasil, os cazaques esperaram mais do que marcaram os jogadores portugueses, o pavilhão gritou o nome de Higuita por valentes defesas feitas na sua baliza e não pontapés feitos na direção da outra. Era palpável o sofrimento do Cazaquistão, incapaz de segurar uma bola por mais do que três segundos, já sem aptidão para ultrapassar a linha do meio-campo, nem tentar puxar o seu guarda-redes habilidoso para as posses de bola.

Anvar Ilyasov - FIFA

Foi uma parte final que pontuou 20 minutos de avalanche portuguesa, com uma catrefada de remates tentados (55) e acertados (15) na baliza, mas, por maior que fosse a alma, mais acentuada que se mostrasse a superioridade no fio de jogo, a eficácia a finalizar teimou em ser parca. Quando, com um minuto e vinte e três segundos em falta, Jorge Braz fez soar a corneta de um desconto de tempo, fez por acalmar os seus, lembrou para a fartura de tempo, primou por serenar os ânimos e repetiu o nome de código da jogada combinada que pretendia ver os jogadores a executarem. Havia ainda cronómetro para outro rasgo inventivo.

Mas, regressados à quadra, posta a magicação em marcha, um passe falhado de Pany Varela precipitou a bola para fora. Com as duas mãos, o jogador bateu na cabeça, palmas a martelarem na testa de uma cabeça ciente da delicadeza daquele momento - e quiçá vidente, também da fatalidade. Porque a posse que Portugal deu o Cazaquistão aproveitou-a para desencantar um golo à risca, no limite, com uma jogada das suas a partir de um lançamento lateral que culminou em remate enrolado de Tursagulov na área. Foi o 2-1 e o relógio só tinha 14 segundos nele.

Nessa magreza de tempo, os portugueses cercaram a outra baliza, foram com tudo quando esse ‘tudo’ era tão parco, mas, do coração a reinar sobre a cabeça ainda se disparou um portentoso remate que Higuita, de novo, parou magistralmente, berrando na contemplação do próprio feito. No canto, com um segundo em falta, Pany ainda rematou para dentro da baliza, mas para lá do relógio, a revisão no VAR pedida enquanto os cazaques espalhavam festejos na quadra foi apenas uma sofrida súplica por um milagre. Num ápice, Portugal saía do Mundial aos oitavos de final.

Esse breve instante castigador custará mais a digerir, vai afunilar interpretações a fazer à tragédia. O sumo da derrota, contudo, situará a fatalidade da derrota na pouca eficácia que a seleção teve a finalizar por maior que tenha sido, às tantas, a supremacia sobre o Cazaquistão: foram 15 remates acertados no alvo contra apenas cinco. De números nem sempre reza a história dos vitoriosos e a história encadeada por Portugal, em séria, terminou em Tashkent. Após dois Europeus e um Mundial conquistados desde 2018, foram os cazaques a frenar os portugueses.