Caladas as gargantas dos escoceses, a esganiçada gaita de foles posta em repouso, foi descansar a zaragata em forma de coro que aliara instrumento a cordas vocais no Hampden Park e a barulhenta apoteose fornecida pelo ‘Flower of Scotland’, canção adotada como hino não oficial de um país, prenunciava um espetáculo por ansiar na noite de Glasgow. Tamanho arrepio no momento de cantoria, tão especial a entoação da melodia por um pedaço de povo escocês num dos maiores palcos do futebol, em cujos antepassados será jogou o primeiro jogo de futebol, que só poderia ser prenúncio de uma jogatana entusiasmante, das valentes.

Não foi, de todo, o que aconteceu.

E ao minuto 27 viu-se não algo que encapsulou a exibição de Portugal, mas que representou uma fatia da desinspiração da seleção nacional em Glasgow. A bola estava parada à esquerda do meio-campo escocês, quieta entre Cristiano Ronaldo e Nuno Mendes, pronta para desinteressantemente ser passado ao lado pois a mirada da baliza era longínqua o suficiente que nem o capitão dos remates que ligam patavina a distância se atreveria a ousar visualizar um pontapé que perigasse algo dali. Quando o árbitro apitou, o avançado chocou com o defesa, ambos decididos a darem esse passo banal para se iniciar outra jogada. A colisão entre dois atrapalhados um com o outro fez a bola ir parar aos escoceses. Cristiano ficou a rir, o prejuízo foi quase nenhum.

O sorriso do goleador dos recordes, 39 anos e ainda a correr no frio outonal da Escócia, seria o único visto em caras portuguesas ao longo de uma primeira parte enfadonha, desenrolada a ritmo pachorrento, sem nem sequer ter uma mão cheia de apontamentos inspiradores de Portugal a dar uso à muita bola que teve. Feitas seis alterações no onze que começou a partida de Varsóvia, a equipa meio que se atravancou nela própria, embora tal seja só parte da explicação.

Fiel à saída a três, desta feita não foi Nuno Mendes a baixar para junto dos centrais, dando um pé esquerdo à base das jogadas, mas João Palhinha a intrometer-se entre Rúben Dias e António Silva fosse qual se visse a forma de pressionar do adversário. Com os escoceses aglomerados atrás da linha da bola, cerrados os espaços ao centro, Vitinha andou a sapatear por entre corpos seus maiores em tamanho, sozinho a receber, desviar e tocar sem descortinar vantagens mesmo que o seu radar e a sua destreza tentassem espreitar ligações a um Bruno Fernandes escondido metros à frente ou rumo a um Ronaldo deambulante - e inócuo na sua sede em participar - como há já alguns jogos não se via.

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Com Diogo Jota de início a partir da esquerda para invariavelmente se posicionar na área ou perto dela, Cristiano de lá fugiu para pedir os toques na bola em zonas e de formas que de pouco mais serviam do que satisfazer-lhe o apetite. Com a largura à esquerda entregue a Nuno Mendes, a seleção viciou-se a atacar pela direita, onde estava os insistentes cruzamentos de João Cancelo e as artimanhas de Francisco Conceição, que sempre encarava Robertson com fintas e enganos. Incapaz de o ultrapassar, até o extremo com tramoias vidradas na baliza se rendia a cruzar as bolas que lhe chegavam.

Engasgado por muitas faltas, a partida existiu aos solavancos. Bruno Fernandes ia batendo cantos sem proveito e, no primeiro, Cristiano até ficou quase fora da área, condimentando o jogo com um pouco mais de estranheza. Ronaldo rematou de pé esquerdo e frouxo, com o direito e com a bola a sobrevoar o alvo em balão e, depois, até acrobaticamente, com uma bicicleta que extraiu um apito do árbitro por rondar a cara de Billy Gilmour, o mais amigo da bola entre os escoceses sem demais amizades com ela que sustivessem as vezes em que tentaram sair a jogar curto e apoiado de trás. Daí Portugal extraiu, inicialmente, várias recuperações de bola.

A acutilância ofensiva vista na seleção três dias antes ficara em Varsóvia, as triangulações a um ou dois toques perdidas algures nos meandros da viagem, a capacidade de atrair a pressão dos adversários para depois explorar o espaço aberto era uma bagagem transviada. Nem a cabeçada de Ronaldo, na área, ou torto remate de ‘Chico’ Conceição a passe do capitão, em duas jogadas consecutivas no arranque da segunda parte em que Portugal contra-atacou rápido ao roubar a Escócia deram a sacudidela no marasmo que pareciam intuir.

Até o ambiente, o supostamente ruidoso e temível agraciar que o público do Hampden Park presentearia à seleção nacional, ao qual também era preciso ganhar segundo as insistentes menções de Roberto Martínez, era um sepulcro. O enfadonho ritmo do jogo, pelado de oportunidades flagrantes, calava a reputação do estádio cuja velhinha versão acolheu, em 1937, o recorde de assistência (mais de 136 mil pessoas) no futebol europeu. A outra parte da explicação, porém, tinha motivos caseiros.

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A Escócia órfã de pontos nesta Liga das Nações defendia juntinha, compacta e com um bloco baixo que não desarmou após o intervalo, nem quando, pelos 60 minutos, Portugal quis emular em Glasgow a fórmula das alegrias de Varsóvia: saindo Palhinha, Conceição e Jota, entraram Rúben Neves, Bernardo Silva e Rafael Leão para povoar o meio-campo de opções de passe e depositar na esquerda o galope do homem que inferniza o juízo aos adversários a correr no espaço. A novidade, por momentos, fez a exibição portuguesa espernear com vida, mais capaz de articular trocas de bola ao centro e de a fazer circular mais rápido ao instalar-se na metade escocesa.

O embalo de Portugal para a frente, fosse apressado ou com paciência, repetia intrincadas teias de passe nas imediações da área, Vitinha conduzia ou recebia e dava com rapidez, Bruno e Bernardo exploraram os half spaces e o último, esguio e esperto, esgueirava-se por entre corpanzil para meter cruzamentos rasteiros não correspondidos de igual forma que as bolas picadas por Leão, do outro lado, não encontravam Ronaldo, quase sempre vigiado por estar demasiado sozinho a dar presença portuguesa perto da baliza. Só na ressaca de um corte a um cruzamento largo é que Cristiano, fingindo um remate, disparou-o à segunda e ameaçou verdadeiramente o golo em Glasgow.

O melhor período português foi a meia hora final, por certo. Menos emperrada e com outra fluência, Bernardo encarava adversários de um lado mesmo com as suas apetências para outras tarefas, Leão entortava olhos do outro e a seleção teve produção mais contínua de jogadas às quais o único pecada era o último passe. Os escoceses, encafuados no seu reduto, aproveitaram o ímpeto da seleção para zarparem duas vezes em contra-ataques que por pouco não deixaram o Scot McTominay, o seu deerhound, rematar na pequena área. A melhor ocasião seria portuguesa, a terminar: o atacante que joga com um sorriso estampado na cara cruzou rasteiro, da esquerda, e o remate de Bruno Fernandes, de primeira, foi parado com dificuldades por Craig Gordon.

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Quando a ténue inspiração da seleção encontrava uma nesga para alguém ou, por acaso, um corte do conglomerado escocês acabava em pés portugueses na área, um corpo socorrista punha-se no caminho, como aconteceu a Rafael Leão já nos descontos.

Estremecida a arena, antes do jogo, com o ‘Flower of Scotland’, apenas se voltou a ouvir o rugido do Hampden Park mesmo no final, vindo das profundezas, após o último apito soprado pelo árbitro assim que a bola sair de campo no que seria um canto para Portugal quando o tempo de compensação já engordara quase um minuto a mais do que o suposto. O vozeirão coletivo do estádio, sem ser ensurdecedor, ruidou-se para apupar o jogador que abanava os braços em desaprovação e esticava um dedo indicador na direção do tipo do apito, agitando-o em desaprovação, enquanto caminhou apressado e com enfado para o balneário: era Ronaldo, a barafustar por o árbitro não deixar Portugal bater o que teria sido o seu 10.º canto.

Cristiano ainda apontou os polegares para baixo, vincando ainda mais o seu desgosto numa sincronia de gestos condigna com bastantes fases da exibição portuguesa.

O estrebucho do capitão - outros jogadores da seleção também protestaram - foi o derradeiro fragmento colado por Portugal na imagem que deixou em Glasgow. Após três vitórias, o primeiro empate em nada ameaça a qualificação rumo aos ‘quartos’ da Liga das Nações à falta ainda de duas partidas, o que preocupa será a ferrugem coletiva com a bola, a atrair e fazer mexer os adversários durante mais de uma hora, tão pouco tempo após ter deixado sinais tão inspiradores contra a Polónia. A uma das melhores exibições da seleção na era Martínez seguiu-se a murchidão deixada na Escócia, onde ainda não foi desta que Portugal venceu um jogo oficial.