PARIS – Se conhecer alguém que precisa de um incentivo para mudar de vida, fale-lhe do exemplo da norte-americana Kristen Faulkner.
A prova de estrada e ciclismo feminino dos Jogos Olímpicos acabou no Trocadéro há cerca de uma hora, e ela continua a não acreditar naquilo que os seus olhos veem.
E não é a Torre Eiffel ao fundo que a surpreende. É ver o seu nome no quadro luminoso ao lado da palavra «Vencedora».
Porque apenas há sete anos ela estava no Central Park, em Nova Iorque, a contornar cones em aulas para aprender a andar de bicicleta. Só porque queria um hobby ao ar livre que lhe permitisse relaxar da stressante vida de financeira.
Também porque só em 2021, já depois da pandemia, decidiu dedicar-se apenas ao ciclismo, que, entretanto, já lhe ocupava metade da vida.
E ainda porque há pouco mais de um mês, nem era suposto participar na prova que fez dela campeã olímpica, aos 31 anos.
Mas apesar de tudo isto e contra todas as expectativas, ali estava ela no lugar mais alto do pódio, com a medalha de ouro olímpico ao peito.
Vice-campeã mundial júnior de… remo
Natural de Homer, a orgulhosa «capital mundial da pesca de halibut», no Estado do Alaska, Kristen garante que desde muito nova sabe o que é ter de lutar por aquilo que quer.
«Aprendi o valor do trabalho árduo ainda em criança, a trabalhar no hotel e restaurante dos meus pais. Estudei arduamente porque não queria passar o resto da minha vida a limpar casas de banho e fazer o registo de entrada de clientes», escreveu um dia na sua página pessoal.
Quando chegou a hora de Kristen seguir para o secundário, mudou pela primeira vez a sua vida em função do desporto. Rumou a Massachusetts, a mais de 3.000 quilómetros de casa, para integrar uma escola naval e dedicar-se ao remo.
A mudança compensou e em 2010 conquistou, pelos EUA, a medalha de prata nos mundiais juniores na embarcação de oito elementos.
Em 2016, no ano em que terminou a sua formação em Computação, fazia parte da embarcação da equipa de Harvard a chegar ao bronze nos nacionais.
Na altura, achou que aquela poderia ser a sua despedida do desporto, uma vez que se ia mudar para Nova Iorque para iniciar a carreira na área financeira.
Na Big Apple, Kristen começou a trabalhar numa empresa de gestão de capitais de risco. Mas para quem desde sempre tinha tido o desporto na sua vida, faltava-lhe algo.
Foi por isso que, um dia, apareceu de calções e sapatilhas numa escola de ciclismo feminino, no Central Park.
A ideia era ter um hobby para fazer ao início da manhã, afastada do rebuliço da cidade, antes de vestir o fato de executiva e sentar-se ao computador a analisar dados do mercado. E começou mesmo pelo básico: «aprendi a montar a bicicleta e a contornar cones no chão», contou à NBC.
Com uma facilidade de aprendizagem enorme, Faulkner progrediu tão rapidamente que poucas semanas depois já ganhava a sua primeira prova de ciclismo. «Foi quando decidi que queria perceber quão longe conseguia ir no ciclismo», relatou à mesma publicação.
De hobby, rapidamente o ciclismo começou a ganhar cada vez mais importância no dia-a-dia da executiva. Mesmo que, em 2020, ainda se tenha mudado para uma empresa sediada em Silcon Valley, na Califórnia.
Mas a ideia começou a ganhar forma. E não demorou até ela se fazer à estrada. Decidiu deixar de lado a carreira financeira para se dedicar totalmente ao ciclismo.
Porque aquele já era a sua segunda vida. E a paixão era tanta que tinha de passar a primeira. Para que no futuro não houvesse arrependimentos. «Percebi que o pior cenário não seria ficar sem emprego e falida, mas chegar aos 80 anos, olhar para trás e perceber: ‘devia ter feito aquilo’», justificou, ao falar da mudança para Espanha para se dedicar apenas ao ciclismo.
Nem o atropelamento a travou
Já ciclista profissional, Kristen apanhou em junho de 2023 um enorme susto, quando foi atropelada por um carro na Califórnia durante um treino. Do acidente resultou uma fratura na tíbia e uma outra pequena fratura no joelho, que a afastou-a das bicicletas durante alguns meses.
Mas a paixão continuou intacta. E foi já como vencedora de etapas do Giro, da Vuelta e da Volta à Suíça, além de campeã norte-americana de estrada este ano, que soube que ia integrar a equipa de perseguição dos EUA.
Ainda que tenha causado surpresa a não inclusão do nome dela na prova de estrada, a presença numa prova na qual os EUA conseguiram medalhas nas últimas três edições olímpicas, abria-lhe boas perspetivas.
Mas a vida de Kristen estava prestes a dar uma nova reviravolta. Um mês antes do início dos Jogos, soube que afinal seria uma das duas ciclistas a participar na prova de estrada, devido à desistência de Taylor Knibb, que abdicou para se concentrar na prova de triatlo - na qual viria a conquistar a medalha de prata.
O resto é história escrita em letras de ouro.
«Participar nos Jogos Olímpicos era o maior sonho que eu tinha desde os oito anos, quando vi a competição em Sidney. E agora é um sonho tornado realidade. Continuo a olhar para aquela faixa na meta e a pensar como foi o meu nome ali parar!», reconheceu no final da prova em que acabara de dar uma medalha aos EUA no ciclismo de estrada, 40 anos depois da última.
Mas é mais do que isso. É bem mais do que isso. Porque na estreia, ela tornou-se campeã olímpica. E nesta terça-feira ajudou a seleção norte-americana a apurar-se para a final da prova de perseguição, no ciclismo de pista, o que a pode levar a nova medalha.
Seria muito difícil de imaginar algo assim para a executiva que há oito anos apenas queria um hobby. Mas ela mostrou que nunca é tarde para se mudar de vida.