Quando o país exulta de alegria e felicidade ao ser presenteado com mais um êxito internacional de atletas portugueses em qualquer modalidade desportiva, está longe de conhecer os caminhos que foi necessário calcorrear para atingir tais objetivos, desde logo os decorrentes da intensa preparação e treino desportivo. Mas há outros, e são igualmente cruciais e imprescindíveis para o cidadão que virá a notabilizar-se como campeão.

O atleta que nós viremos a conhecer melhor com a medalha ao peito tornou-se atleta muito antes. Deu os primeiros passos na escola ou no clube (cada vez menos na rua), desenvolveu a sua dedicação e competências numa dada modalidade, começou a integrar progressivamente o sistema competitivo, avaliando por si próprio e com a ajuda dos seus treinadores as suas potencialidades para atingir resultados de relevo internacional num percurso de alto rendimento. E logo chega aquele dia, ou pelo menos o tempo, em que atleta e treinador se confrontam com o maior dos dilemas - o momento da opção. O treinador acredita, o jovem atleta ambiciona, mas o caminho da alta competição exige uma dedicação e um esforço extremos, à primeira vista incompatíveis com o seu percurso escolar. É a carga de treinos que aumenta, os estágios que aparecem, as deslocações para provas nacionais e internacionais, tudo a vir impedir a frequência normal das aulas e o desenrolar estável da sua formação escolar.

Abraçar o caminho do alto rendimento obriga a fazer escolhas difíceis e a tomar grandes decisões. A primeira é esta mesmo: ser atleta de topo não pode “matar à nascença” a formação dum cidadão na escola, onde deve recolher as ferramentas para uma vida ativa, contributiva, plena de autorrealização e de sucesso! Um atleta nunca pode deixar de ser antes de mais um cidadão, e um cidadão tem direito a um percurso escolar que o prepare para a vida da forma mais integral possível. Um país que estimula os seus jovens a serem campeões no campo desportivo tem a obrigação de lhes assegurar e garantir que ser campeão é compatível com ser bom aluno, e que a sua carreira desportiva tem de correr a par da sua carreira escolar. A família, estrutura imprescindível no apoio e na segurança do jovem atleta, agradece! E a nossa sociedade mais ainda.

É bom que os portugueses saibam que este caminho já se faz no nosso país. Há hoje uma estrutura denominada de UAARE (Unidades de Apoio ao Alto Rendimento na Escola) que garante aos jovens o modelo da carreira dupla, permitindo compatibilizar a sua entrega ao desporto de alto rendimento com a exigência académica da carreira escolar. Isto sempre em busca do sucesso duplo, no desporto e na escola, e dirigido a todos os que integram o alto rendimento e as seleções nacionais, articulando num mesmo objetivo as escolas, os encarregados de educação e até os municípios, com os agentes desportivos.

Esta componente da gestão escolar requer um compromisso pedagógico do Professor, um apoio personalizado, possibilidade de ensino à distância, e também apoio psicológico e psicopedagógico. A componente desportiva exige a conciliação dos treinos, dos estágios, das competições, no país e no estrangeiro, com as responsabilidades escolares. Este é um esforço colossal de coordenação, que tem sido reforçado em cada ano que passa e que tem já hoje resultados extraordinários e altamente compensadores.

No último ano letivo de 2023/2024, este desafio enquadrou 25 escolas da rede nacional e duas em projeto-piloto, envolvendo 1263 alunos, bem como 420 professores e psicólogos de Norte a Sul do país. Ao nível desportivo, estes 1263 alunos eram atletas de alto rendimento de 313 clubes, em 55 modalidades, junto a 52 federações desportivas.

Este universo de atletas participou em 2669 provas internacionais (2116 em seleções nacionais) e obtiveram 2240 lugares de pódio nacionais, 337 de pódio europeus e 58 mundiais. Notável, tanto mais que para este empenho (em treinos, estágios e competições) tiveram 99 562 ausências à escola, com 38 563 apoios pedagógicos e 10 882 apoios psicopedagógicos. E nestas condições, qual terá sido a taxa de desempenho escolar destes nossos campeões? Uma taxa de 96,10%, bem acima dos valores da média nacional e com 80,06% de taxa de classificação positiva a todas as disciplinas.

Este mundo novo - que dignifica o desporto, a educação e o país - tem um rosto, o Professor Victor Pardal, hoje Coordenador Nacional das UAARE. Em 2009 era docente no Agrupamento de Escolas de Montemor-o-Velho. Aí o fui encontrar. Havia sido construído o Centro de Alto Rendimento de Montemor, destinado à canoagem e ao triatlo, e começavam a chegar os atletas para integrar esse Centro. Era preciso o enquadramento escolar para que esse caminho de desenvolvimento escolar não se perdesse. Atletas campeões sim, mas também alunos campeões. Pediu-se ajuda à Escola. A ajuda veio do Conselho Diretivo, que acolheu os novos alunos, mas sobretudo desse professor que se encantou com a ideia. Tanto, que ainda hoje não se cansou. Foi então criado nessa mesma Escola o Gabinete de Apoio ao Alto Rendimento, primeiro com nove alunos e no ano seguinte com 20. E a semente vem dando belos frutos.

Os resultados escolares e desportivos foram tão relevantes que levaram a que, anos mais tarde, em 2016, replicando o modelo de Montemor em outras zonas do país, fosse criado o Projeto UAARE, que hoje apresenta estes números. Começou com nove alunos/atletas em 2009 e já vai em 1263, sempre com o mesmo Coordenador, aquele apaixonado, determinado, metódico e sempre eficiente Victor Pardal. Por todas estas razões, o Governo anterior, em novembro de 2023, decidiu alargar ao ensino superior este mesmo projeto, fechando assim o ciclo académico, garantindo aos atletas/estudantes a conciliação do seu percurso académico com a sua carreira desportiva. Andou bem. E sei também que o atual Governo entende prosseguir e reforçar este quadro de manifesta importância para o sucesso desportivo, sempre sustentado pelo sucesso académico. Vai também no bom caminho.

Não há nada de mais desejado por atletas e famílias do que saberem que o seu país e os seus responsáveis políticos e desportivos entendem que o sucesso desportivo - a sonhada medalha, o desejado troféu - não pode ser indissociável do sucesso académico. A carreira desportiva tem um “prazo de validade”, associado à capacidade física de exceção, que se dissipa naturalmente com o avanço da idade. Imaginemos simplesmente a diferença que trará para a confiança dum jovem atleta (e da sua estrutura de apoio familiar) no seu sonho desportivo, o saber que após alcançadas as glórias desportivas existem várias outras vias para um futuro de sucesso, para o assegurar duma longevidade profissional e de uma integração social gratificantes. O risco aparente duma entrega total ao sonho desportivo diminui, e a possibilidade de sucesso desse sonho naturalmente explode.

Jovens atletas confiantes, bem desenvolvidos desta forma integral, vão não só sentir-se mais fortes no seu percurso de vida escolhido, mas vão também inspirar, servir de modelo, vão ajudar a fortalecer toda uma geração que hoje em dia tão facilmente se vê perdida entre a realidade doentia da hiper-abundância digital e a escassez da verdadeira interação social. Uma eficaz associação do desporto de excelência (leia-se também aqui as artes) ao tecido escolar e universitário é receita segura para enriquecer as nossas comunidades e cada um de nós.