Se a teoria fosse imbatível na prática e não beliscável enquanto dona da razão, uma seleção, chegada ao Mundial, quereria sempre acabar a fase de grupos no 1.º lugar de modo a evitar, nos oitavos de final, calhar com um adversário mais capaz, já que o formato tradicional dos torneios é emparelhar quem acaba a liderar um grupo com alguém que terminou na 2.ª posição noutro lote. Por vezes, esta lógica não tem reflexos nos resultados: há equipas com melhores jogadores, melhor treinador, supostamente melhores em campo, que não conseguem traduzir a superioridade. Mas, para baralhar esta ordem de ideias, no Campeonato do Mundo de futsal há 24 seleções e um forçado abraço à moda de alguns 3.ºs lugares terem acesso à fase a eliminar.

Através dos óculos dos possíveis cruzamentos e possibilidades no quadro do torneio se está a analisar o que se viu no França-Irão. Jogado no domingo, foi a última partida do Grupo F e provocou uma insurreição de críticas dirigidas, sobretudo, à atitude demonstrada pela seleção gaulesa, em específico no lance do primeiro golo da partida, ao quinto da segunda parte: Salar Aghapour avançou com a bola área dentro e penteou-a com a sola da sapatilha sem que algum dos três franceses que lhe pareciam sair ao caminho, de facto, tentassem desarmá-lo até ao iraniano rematar, já com pouco ângulo, para a baliza onde o guarda-redes, Thibaut Garros, nem tentou parar a tentativa. Pareceu até encolher-se enquanto a bola passou entre ele e o poste, intuindo zero esforço.

O Irão, campeão asiático, marcaria mais três golos contra um único que a França, estreante no torneio, logrou fazer, ficando com a liderança do grupo e um duelo nos ‘oitavos’ com Marrocos, segundo classificado do grupo de Portugal. Em teoria, um adversário mais exigente do que a Tailândia, que ficou atrás do Brasil no Grupo B. Na tradução disto para a prática futura, o 2.º lugar dos gauleses fez com que o país ficasse de um lado do quadro em que eventualmente só terá de defrontar um candidato ao título nas meias-finais - no caso, Portugal ou Argentina. Ficando os iranianos na proa do grupo, podem cruzar-se com o Brasil, outro bicho-papão do futsal, logo nos ‘quartos’.

As reações ao aparentemente propositado pouco esforço dos franceses surgiram com pressa. “Não sei até quando os atletas vão pactuar com estas coisas e para quando vamos criar um conceito para que na última jornada haja mais coisas assim. O futsal perde, o desporto perde.. que triste!”, escreveu Ricardinho, um dos melhores jogadores da história. A crítica do português, apresentada como um ato cometido pela França para “evitar rivais mais difíceis”, seria das mais dóceis.

A maioria teve origem em vozes com protagonismo neste Mundial, sem titubearem. O espanhol Miguel Rodrigo, selecionador da Tailândia que vai defrontar a seleção gaulesa, culpou “os treinadores e jogadores” de França e Irão: “Aconteça o que acontecer no dia 27 [data da partida dos oitavos de final], e admitindo que somos a parte mais débil desta história, digo: ‘França, esperamo-vos de braços abertos.’ Desonraram o meu desporto. Sois uma vergonha mundial.” Marquinhos Xavier, selecionador do Brasil, seguiu pelos mesmos eixos, embora mais criptíco: “O FUTSAL no mundo são as pessoas que o comandam, não culpem o FUTSAL, responsabilizem as pessoas. Não sabemos quem irá ganhar, mas já sabemos quem perdeu.”

Ainda com menos hesitações, mas partilhando a falta de pudores em criticar em público com recurso às redes sociais, Juanjo Catela, um dos destaques da seleção de Espanha, deixou uma mensagem após o encontro: “Somos o que merecemos 🤮🤮🤮… e cheira a 💩💩💩.” Dois jogadores da Croácia, outra equipa já nos oitavos de final, juntaram-se à crítica. Darío Marinovic lamentou que “a FIFA e todos se riam de nós” e Franco Jelovcic lembrou: “Nós queremos ser desporto olímpico.” Miguel Andrés, outro espanhol que serve de treinador neste Mundial, no caso dos Países Baixos, dirigiu-se em específico aos selecionadores de Irão e França - “A mim estes não me representam. Às vezes não é agradável partilhar profissão.”

O site “Relevo” noticia que pelo menos as federações de a Líbia e do Paraguai - os africanos já foram eliminados, os sul-americanos seguiram para os ‘oitavos’ na liderança do Grupo A - já terão enviado à FIFA queixas quanto a alegado match-fixing no jogo em questão. Oficialmente, a Federação Portuguesa de Futebol (FPF) deu conta à Tribuna Expresso de que não se vai pronunciar acerca do caso, mas houve pelo menos dois jogadores da seleção a manifestarem-se, via Instagram, ambos munidos da mesma fotografia e palavras. “É uma questão de honra. E depois queremos respeito…”, partilharam Érick Mendonça e Tomás Paçó. A entidade que organiza o Mundial não confirmou se chegou a receber alguma manifestação formal de protesto.

Da parte dos maiores visados, logo no rescaldo da partida houve comentários. “É uma pena o resultado e não entendemos o porquê de o Irão não querer jogar por nada”, disse Raphaël Reynaud, o selecionador gaulês, culpando os adversários que fizeram 31 remates (17 na baliza) contra os oito de França (três no alvo). O capitão, Kévin Ramírez, mostrou-se mais realista: “Somos conscientes de que não oferecemos o melhor espetáculo, mas isso também faz parte da competição.” No pouco espaço que dedicou à partida, mas noticiando-a ao contrário, por exemplo, de publicações como o “Le Monde” ou o “Le Parisien”, o jornal “L’Équipe” descreveu-a como “largamente insípida” entre duas seleções que “praticamente nada fizeram”.