Raquel Sampaio é um dos nomes mais fortes da atualidade do futebol feminino em Portugal. Aos 35 anos, já fez de tudo. Foi jogadora, treinadora, dirigente - impulsionou os projetos de Estoril Praia e Sporting - e agora dedica-se a agenciar jogadoras e treinadoras.
A Teammate Football Management foi a primeira agência de futebol feminino e foi criada por Raquel. Ou seja, agora é ela quem tenta ajudar as jogadoras, isto de forma a dar-lhes as condições que muitas vezes lhe faltaram.
O zerozero esteve à conversa com a agente, depois de um mercado de transferências muito badalado a nível nacional e internacional.
«Portugal foi o terceiro país que mais comprou e recebeu»
zerozero: Este foi um dos mercado mais movimentados - não só em Portugal como lá fora - e a Raquel tem essa perceção dos dois lados. Como é que vê esta mudança e este crescimento, principalmente para Portugal?
Raquel Sampaio: Gosto sempre de falar com base em dados. Recentemente saiu um report da FIFA, referente ao período entre 1 de julho e 4 de setembro, que nos mostra que os valores de venda duplicaram. No ano passado, neste mesmo período, tínhamos cerca de três milhões de vendas feitas a transfer fee - ou seja, clubes a pagar por jogadoras. Neste momento, temos cerca de 6.8 milhões de euros.
Outra das curiosidades que acompanhei neste report é que Inglaterra é o país que mais compra e gasta, seguido logo de Espanha. Inglaterra gastou 2.3 milhões em transfer fees e Espanha gastou 1.35 milhões. Os Estados Unidos - que, curiosamente, eu achava que estaria no topo - gastaram 1.14 milhões de euros. Portugal aparece no top-9, com 140 mil euros gastos, mas há um dado ainda mais curioso, e foi isso que me chamou a atenção,
Apesar de Inglaterra ser o país que mais gasta e compra, é também o que mais vende e recebe. Aqui, Portugal aparece na terceira posição - fizemos um valor de quase um milhão de euros. Portugal foi o terceiro país que mais comprou e recebeu - acredito que com a influência da compra e venda da Olivia Smith e da Telma [Encarnação] também. Isto mostra-nos que, se calhar, no futuro podemos pensar em fazer o mesmo que os homens têm feito. Podemos ser um país mais exportador. Podemos atrair talento, desenvolver esse talento e vender esse talento. Não só atrair, como também desenvolvê-lo internamente porque temos muito talento.
zz: Quem se mostrou bastante neste mercado - como a Raquel mencionou há pouco - foram os Estados Unidos. Afinal, temos a transferência da Jéssica Silva como exemplo, mas também outros grandes nomes do futebol europeu que se mudaram para a NWSL. Na sua opinião, o que levou a esta debandada no último mercado e como poderá a jogadora portuguesa ver este destino?
RS: Eu acho que o mercado dos Estados Unidos é um mercado muito particular. Acho que eles fazem muita coisa boa, principalmente fora do campo. São os melhores a nível comercial, sem dúvida nenhuma. Aprendem muito bem e vendem muito bem o produto. Mas não sei até que ponto é que o futebol nos Estados Unidos encaixa na perfeição na jogadora portuguesa. Eu acho que não é um estilo de futebol com o qual a jogadora portuguesa se sinta cómoda a jogar.
No entanto, os Estados Unidos querem ser a melhor liga no mundo e, portanto, é normal que venham contratar não só em Espanha - porque são as melhores jogadoras do mundo e é isso que eles têm feito -, mas que comecem a olhar também para a jogadora portuguesa. Porque, crendo ou não, é uma jogadora muito semelhante à jogadora espanhola e, provavelmente, ainda uma jogadora mais barata. Se eles querem ser os melhores, não só fora do campo como também dentro, é normal que eles comecem a olhar para as nossas jogadoras espanholas e portuguesas.
«Poucos clubes estão preparados para receber jogadoras tão jovens»
zz: A Raquel esteve envolvida em várias das transferências deste mercado - e de nomes sonantes, nomeadamente na ida da Iara Lobo para o Barcelona, da Maria Ferreira e da Rita Almeida para o Villarreal e da Bruna Lourenço para o Celtic. Podemos dizer que há uma valorização cada vez maior da jogadora portuguesa no estrangeiro?
RS: Este mercado foi muito bom a nível dos clubes onde nós colocámos as nossas jogadoras. Sem dúvida nenhuma, são nomes bons no panorama do futebol. O facto de os clubes virem buscar jogadoras cada vez mais novas diz-me duas coisas.
Os clubes começam a querer desenvolvê-las para estarem preparadas e estarem no sistema deles para chegarem às equipas A. São jogadoras obviamente mais baratas, também. Hoje em dia, contratar uma sénior sai mais dispendioso do que vires buscar uma jogadora de 16 anos que tem um talento brutal e que, provavelmente, no futuro vai chegar à tua equipa A. Portanto, faz sentido trazê-la, dar-lhe os recursos, dar-lhe o know-how para a desenvolver, para ela chegar lá cima mais bem preparada.
Por exemplo, a Iara é uma jogadora mais barata agora do que, provavelmente, se já tivesse feito a estreia pelo equipa A do Sporting, se já tivesse chegado a uma seleção de categoria superior. Eu acho que vai ser a tendência, tal como é nos homens: procurar o talento mais cedo. Os clubes estão a desenvolver cada vez mais os departamentos de scouting - não só nas equipas seniores, como também nas equipas jovens, e daí conseguirem trazer este talento.
zz: Em comparação, quais são as grandes diferenças entre as condições dadas nos clubes em Portugal e lá fora para as jogadoras mais novas?
RS: Os clubes lá preparam-se para receber estas jogadoras de 16 anos. Muitos clubes ainda não têm estas condições nas equipas A, portanto podemos imaginar a falta de condições que têm ainda nas suas equipas de formação. Eu acho que, aqui, está o ponto-chave: estes clubes prepararem-se bem para receber jogadoras que são menores de idade, que vão sair de casa e cujos pais vão ficar preocupadíssimos e precisam de confiar no clube para deixar as suas filhas.
O Barcelona, neste momento, querendo ou não, proporciona todas essas condições. A Iara está na La Masia, tal como estão os homens. Tem todos os recursos e mais alguns à sua disposição e tem uma coisa que é muito importante e que eu acho que falta criar: o Player Care. É bom ter nutricionistas e psicólogos que cuidam de ti tanto dentro como fora do campo porque é uma mudança muito grande a nível cultural, de idioma e de vida no geral.
«Tudo isto é uma nova era»
zz: A transferência da Telma Encarnação para o Sporting foi uma das mais faladas deste mercado por ter sido uma das primeiras que envolveu valores monetários em Portugal. Como é que a Raquel viu esta movimentação?
RS: Sinceramente, eu acho que o que aconteceu não vai ser muito comum de acontecer - estares a pagar uma transferência de um clube nacional para outro clube nacional. Para começar, é preciso ser uma jogadora realmente diferenciada, como é a Telma. Depois, ela estava num clube cujo objetivo, penso eu, era a venda no futuro. Acho que não aconteceu antes porque a jogadora não o quis, mas eu acho que não vai ser prática comum. Acredito que seja uma exceção e não uma regra. Eu acho que o que vai acontecer cada vez mais - está a acontecer e os dados assim o ditam - é realmente saírem para fora.
zz: Também neste mercado, temos o exemplo da Kika Nazareth. É mais uma dessas transferências sonantes onde a jogadora sai de Portugal e, neste caso, segue para o Barcelona, também envolvendo transfer fees...
RS: Eu acho que é uma nova era porque, em 2016, as jogadoras tinham contratos de trabalho desportivos. A maior parte tinha contrato de prestação de serviços e faziam-se muito poucos contratos de formação. Eu fechava as jogadoras sem falar com um único agente. Falava diretamente com as jogadoras ou com os pais. Hoje, que estamos em 2024, todas as jogadoras têm agente. Todas as jogadoras dos clubes grandes - tirando o FC Porto, que acabou de chegar -, têm um contrato profissional. Todas as boas jogadoras jovens têm um contrato de formação a partir dos 14 anos e todas as boas jogadoras jovens têm contratos profissionais aos 16 anos.
Tudo isto é uma nova era e já se paga transfer fees pelas jogadoras. E, portanto, a única coisa que vai acontecer no futuro é haver cada vez mais transferências. As jogadoras estarem mais dispostas a fazerem contratos longos porque antes sabiam que era muito difícil vir algum clube pagar por elas. Aqui, há ainda outro aspeto a ter em consideração: ao fazeres um contrato mais longo, também te dá outra segurança e outra estabilidade. Podes estar tranquila, se fores boa e te destacares, não faz mal teres um contrato de cinco anos ou quatro.
zz: E isso já é uma garantia que a própria jogadora poderá ter a nível pessoal...
RS: O valor da cláusula é um valor de referência que pode ser negociado. Se bater o valor da cláusula, vais. Se não, negoceias e podes sair também. Eu acho que estamos muito nessa era, na era das transferências. Em que finalmente é negócio. Sobretudo, acho que é negócio no sentido positivo da palavra. O futebol feminino, hoje, ao contrário do que era em 2016, pode ser negócio, mas na forma positiva. Isto pode ter uma conotação negativa, mas neste caso é bom para todos. Toda a gente ganha.
Espanha e Portugal: vizinhas, mas distintas realidades
zz: Por exemplo, comparando o futebol espanhol com o futebol português. Quais são essas grandes diferenças para além da questão da competitividade?
RS: Muitas equipas da segunda divisão espanhola são profissionais e, muito provavelmente, na nossa liga estariam a competir por lugares mais altos. Há muitas equipas na segunda divisão espanhola que têm melhores condições do que as que nós temos aqui em equipas de primeira divisão. Mais recursos, melhores relvados.
Possivelmente, devíamos criar um novo espaço competitivo. Se calhar sub-23, - não sei se faz sentido -, mas um espaço competitivo, como existe a Liga sub-19.
Temos de arranjar um contexto onde elas consigam mostrar todo o seu potencial e a segunda divisão espanhola é, sem dúvida, bastante interessante. É um campeonato super duro, exigente e onde as treinadoras também são muito desenvolvidas. Espanha é gigante, comparativamente com Portugal, e já é muito difícil escolheres porque existe mesmo muito talento. A Liga não é profissional, mas quase todas as equipas são profissionais.
zz: E isso acaba a dar outro alento à jogadora.
RS: Ela quer jogar. Aos 16 e aos 17 anos, queres jogar e queres jogar com boas condições. Queres jogar num clube que te proporcione boas condições para o teu desenvolvimento. O contexto espanhol parece-me um excelente contexto.
«Sinto que devíamos pensar na profissionalização»
zz: Sendo que existiram todas estas mudanças no último verão e também algumas alterações regulamentares na Liga BPI, como prevê esta nova edição do campeonato?
RS: A obrigação de jogar em relvados naturais obriga a maiores custos, mas é uma boa medida. A situação do Vilaverdense deixa-me preocupada porque têm de se acautelar estes casos. Eu batalho pela profissionalização porque estes episódios, que ao dia de hoje são caricatos no futebol feminino, podem ser evitados. Não é só para as jogadoras estarem mais protegidas a nível de condições laborais, mas também para os clubes terem outras e melhores condições.
Prevejo um campeonato possivelmente a dois. Sinto que o Sporting está a encurtar o gap para o Benfica. Prevejo uma liga algo desnivelada, mas com algumas a lutar pelo top-4 e os lugares europeus. O que me custa mais é as jogadoras sentirem desnível e, no final do ano, quererem sair.
Agora entrou o FC Porto e acho que foi uma lufada de ar fresco. Quando chegar à primeira divisão - tem dois anos para se preparar para isso - vai chegar para competir. Mas precisamos de mais clubes como o FC Porto e até o Rio Ave, que também me parece que, na segunda divisão, dá boas condições às jogadoras. Sendo que a liga vai ficar mais curta.
Eu não acho que encurtar, nesta fase em que estamos, seja uma má medida. Vai ser mais difícil estar na primeira liga e vai obrigar os clubes a fazer esse investimento. Depois, voltar a subir vai ser muito difícil. Sinto que devíamos pensar na profissionalização em vez de estarmos aqui a arranjar maneiras para que os clubes invistam mais para não descer. O único ponto bom é que as jogadoras vão ter menos jogos e é super importante porque acho que elas estão sobrecarregadas. Nessa perspetiva, é bom. Acho que é uma boa medida.
zz: Falando da Liga BPI, acaba por ser inevitável falar da saída de Mariana Cabral do comando técnico do Sporting. Sendo a Raquel agente da treinadora, o que se augura para o futuro dela depois desta longa experiência?
RS: É engraçado porque conheço a Mariana há mais de dez anos. Fui sua adjunta, no Estoril Praia. Depois fui sua diretora, no Sporting, e hoje em dia sou sua agente.
A Mariana é a melhor treinadora portuguesa da sua geração. É uma pessoa extremamente intensa, mas super competente. De extrema exigência consigo, mas também com todos aqueles que a rodeiam. É uma lufada de ar fresco nesta nova geração de treinadores, deixou a sua marca em todas os escalões por onde passou no Sporting. Portanto, diria que foi uma passagem bastante positiva, já que em todos os escalões conquistou troféus e, sobretudo, marcou positivamente muitas gerações de jogadoras.
Estou convencida de que o futuro poderá passar por uma carreira bonita internacional. A saída da Mariana do Sporting teve um enorme impacto em Portugal e internacionalmente. No próprio dia surgiram várias abordagens interessantes. No entanto, foram oito longos anos. É tempo, por isso, de desconectar, recarregar baterias, conhecer e “beber” de novas realidades - impossível de fazer quando estás no ativo - e ver que oportunidades o mercado vai trazer.