Bruno Moraes. O nome é-nos familiar. Pudera... Campeão da Europa em 2004, vencedor de duas Ligas Portuguesas (2003/04 e 2006/07) e uma Taça de Portugal (2004/05). À lista ainda se acrescenta um Brasileirão, conquistado pelo Santos quando tinha apenas 18 anos.

Agora, aos 40 anos, é hora de olhar para o futuro. Depois de treinar os escalões de formação do Sport Clube de Canidelo durante quatro anos, o luso-brasileiro aponta a outros patamares. Em conversa com o zerozero, o agora treinador, diz sentir-se «preparado» para outros voos e admitiu «precisar de agarrar um projeto ainda mais cativante, sério e competitivo» à semelhança do que viveu «como atleta».

De José Mourinho a André Villas-Boas, passando por Jorge Costa, Pepe e César Peixoto. Eis o passado, presente e futuro de Bruno Moraes, o treinador.

Subir de patamar

zerozero: Fez a sua última época como jogador no Canidelo, em 2021/22. Já treinava a formação do clube nessa altura?

Bruno Moraes: No meu último ano como jogador profissional, recebi um convite de um coordenador do Canidelo para treinar. Não precisava terminar a carreira. Podia continuar a jogar e começar a treinar a formação. Eu estava no Trofense nessa época, mas decidi aceitar. A partir daí, comecei a treinar a formação do Canidelo.

ZZ: Em que escalões trabalhou?

BM: Treinei quatro épocas no Canidelo. Passei por diversos escalões. Pelos sub-13, sub-16, sub-18. E nesta última época, 2023/2024, recebi um convite para treinar os sub-13 novamente, já que era a única equipa da formação que não estava na primeira divisão. Aceitei o desafio e fizemos uma belíssima campanha. Ficámos em terceiro, não conseguimos subir.

@Bruno Moraes

ZZ: Quantas equipas subiam?

BM: Apenas uma. Não foi possível, mas fizemos uma campanha excelente. Quando a época acabou percebi que também precisava de crescer e já tinha ganho experiência suficiente para poder tentar outros voos.

ZZ: O que retira desses anos a treinar a formação?

BM: Deram-me muita coisa. Há quem pense que ser jogador e ser treinador é muito parecido, mas não é. Pude perceber ativamente que é bem diferente.

ZZ: São dois mundos diferentes...

BM: Completamente. Enquanto um jogador só se preocupa com o seu corpo, com a sua forma física e tenta estar no seu melhor sempre, um treinador trabalha muito mais a mente, trabalha a organização, e as relações interpessoais. Acho que é muito importante passar pela formação porque nos dá algum à vontade na liderança, na comunicação, nas decisões. Essa é a confiança e a forma de estar que um treinador deve adquirir para poder ter sucesso no futebol.

ZZ: Recuperando o que disse, sente que está preparado para outros voos? Chegou a altura de uma equipa sénior, talvez?

BM: Exatamente, sinto-me preparado. Preciso disso até para estar mais motivado, para estar comprometido com um projeto que seja mais sério, mais parecido com o que vivi como atleta. Foi sempre alto nível, alto nível, a procurar estar sempre entre os melhores. E agora acho que chegou o momento de dar o salto, procurar um desafio a nível sénior, uma equipa B ou sub-19. Algo mais cativante do ponto de vista desportivo. Mais sério e mais competitivo.

«José Mourinho sabia provocar-nos»

ZZ: Um jogador com a sua carreira, escusado será dizer que se cruzou com grandes treinadores. Mourinho, Jesualdo Ferreira, Co Adriaanse, José Couceiro... Com quem aprendeu mais?

BM: Grandes treinadores. O melhor? Com quem aprendi mais? José Mourinho. Mas foram todos importantes. Até os que, na altura, eu não gostava [risos]. Obrigaram-me a crescer na parte da paciência. Para um jogador é importante saber aproveitar as oportunidades, saber esperar. Quando cheguei a Portugal o meu primeiro treinador foi o José Mourinho. E aprendi muito nesse ano. As coisas correram lindamente. Ele já vinha de um processo de ser campeão da Liga, depois ganhou a Taça UEFA... e recebeu-me com uma simplicidade, com uma humildade tremenda. Aquilo marcou-me muito. A forma como ele abordava qualquer conversa, sempre muito preparado, e como ele trabalhava a parte psicológica da equipa desde o início da semana. Eu achava fantástico aquilo e aprendi muito.

ZZ: São características que sente que tentará replicar agora na sua carreira como treinador?

BM: Eu tenho as minhas próprias ideias e vou praticá-las quando achar que tem de ser. No entanto, penso que podemos copiar as coisas boas e aplicar isso na nossa forma de estar e de trabalhar. Foi uma honra e um prazer enorme ter sido treinado por esses treinadores.

qMourinho disse-nos «Meus amigos. Se vão entrar assim, vão levar três ou quatro»
Bruno Moraes

ZZ: Tem algum exemplo dessas coisas boas que pretendes «copiar»?

BM: Tenho muitos. Por exemplo, estava a jogar no Rio Ave, emprestado pelo FC Porto. Íamos jogar contra o Olhanense, que era treinado pelo Jorge Costa. O jogo estava para nós, estávamos a jogar em Vila do Conde, a dar um 'chocolate' no Olhanense, estávamos a ganhar por 1-0. Quem viu a primeira parte ficou com certeza que iam ser três ou quatro para nós. Só que no último lance da primeira parte, o Jorge Costa num ato de coragem, disse aos jogadores todos para subirem num canto. E empataram. Depois não sei o que ele fez no balneário, deve ter dado uma 'dura'. O Jorge era muito forte na liderança. A equipa do Olhanense voltou outra. No primeiro lance, o avançado do Olhanense passou pelo nosso central, o central perde o tempo de entrada e é expulso. Ou seja, ficámos com um a menos e, de repente, mudou tudo. Porque mudou? Pela coragem do Jorge. Pela atitude dele de mostrar aos seus jogadores que eles tinham de arriscar, que não poderiam dar o jogo como perdido. E eu acho que é aí que o treinador pode ajudar uma equipa. Com a demonstração dele de coragem, de colocar a equipa em sentido e mostrar que acredita. Os jogadores são muito atentos. Sentem a ambição de um treinador ou a falta dela.

ZZ: Sentia isso com o Mourinho, por exemplo? Ele tinha uma maneira muito própria de mostrar as coisas...

BM: Além de ser um estratega, uma pessoa que analisava o adversário e estudava, ele sabia provocar o desconforto na equipa. Sabia picar-nos e às vezes eu até achava que era um pouco duro, mas era a forma que ele encontrava.

ZZ: Como é que se pica uma equipa que na altura estava a «atropelar» os adversários?

BM: Houve ali uma fase em estávamos a ganhar muitos jogos em 2003/04. E íamos ter um adversário difícil. Acho que na Liga dos Campeões. E ele disse-nos: «Meus amigos. Se vão entrar assim, vão levar três ou quatro».

ZZ: No balneário?

BM: Sim. Ficámos a olhar uns para os outros... «Ganhamos tudo e vamos levar três ou quatro?», pensámos. Aquilo mexeu connosco. Ficámos bem mais sérios, no treino a seguir a malta que facilitava começou a levantar as meias, o calção. Entrámos todos em sentido e o jogo correu bem. Ele fazia muito isso, provocava-nos muito. Não é importante só a motivação, mas também é importante a gestão da expectativa também. Faz parte da missão de um líder.

«André Villas-Boas foi crucial para o sucesso em 2003/04»

ZZ: Quando chega ao FC Porto, André Villas-Boas era observador. Tinha um papel importante dentro da equipa?

BM: Sem dúvida!

ZZ: Qual era a missão dele?

BM: Era muito específica porque analisava o adversário. Fazia-nos chegar a informação através de documentos, CDs para estudarmos... e estava tudo preparadinho para nós conseguirmos ver os defeitos, as falhas e o que podíamos explorar no adversário.

ZZ: E a relação com Mourinho?

BM: Eles tinham uma simbiose muito grande. Havia uma sintonia gigante entre André Villas-Boas e José Mourinho a nível de trabalho. Percebíamos que havia uma boa sintonia na forma como chegava o material e a forma como o Mourinho apresentava para os jogadores. Os vídeos já vinham todos resumidos e o mister na altura não precisava de muito tempo.

ZZ: Era mais objetivo?

BM: Muito objetivo. As palestras com vídeo não passavam de 10/15 minutos e ficava tudo ali muito bem esclarecido. No início da semana já tínhamos a equipa adversária preparada. Tudo muito minucioso, os detalhes, aquilo que tínhamos de fazer e já trabalhávamos isso no treino. Na última palestra era só uma revisão dos pormenores, das bolas paradas e alguns detalhes.

ZZ: A máquina também estava bem oleada, não precisava de muita coisa...

@FC Porto

BM: Sim, o Mourinho foi mestre em tudo. A forma como preparou a sua equipa técnica... André Villas-Boas, André André, Aloísio, [Baltemar] Brito, o nosso treinador de guarda-redes também, que era o Silvino... só campeões. O nosso preparador físico também, o [Rui] Faria. Tinha muita gente competente, muita gente de alto gabarito. E depois a própria equipa. Eles trabalharam muito bem no mercado

ZZ: Foram buscar jogadores com vontade de singrar, a maior parte portugueses ou de clubes portugueses.

BM: Sim, jogadores que estavam com aquela ambição e que queriam dar tudo por ele. Ele teve muito mérito nisso.

ZZ: E a maneira dele abordar a imprensa, como era vista por vocês no balneário? Aquela frase mítica «Em condições normais, nós vamos ser campeões. Em condições anormais, nós também vamos ser campeões!».

BM: Foi muito impactante, não só para mim, que vinha da América do Sul e do futebol brasileiro. Para todos aqui em Portugal, a coragem, a ambição e também a confiança que ele tinha no trabalho dele e no grupo. Se alguém tinha dúvidas, foram dissipadas ali naquela entrevista. A perspicácia dele, a inteligência... tudo. Ele quis mostrar essa coragem e que o FC Porto, com ele, ia jogar para ganhar, ia para cima, ia mudar a história, ia conseguir coisas que só estão destinadas aos grandes. E conseguiu.

qO André é muito portista. É uma pessoa apaixonada pelo clube e com ideias frescas
Bruno Moraes

ZZ: Voltando aqui a André Villas-Boas. Queria perguntar-lhe se, agora, olhando para trás, consegue perceber o quão importante foi o papel dele para vocês?

BM: Sim, era muito importante o trabalho dele. Eles já faziam com outras ferramentas o que o pessoal faz hoje nos grandes clubes. E estamos a falar de há 20 anos. O trabalho do André Villas-Boas foi crucial para o sucesso da equipa de 2003/2004.

ZZ: Ele que mais tarde assume o papel de treinador.

BM: Quando aparece na Académica já se falava muito nele. Os jogadores comentam muito uns com os outros e o feedback sobre ele era muito bom. E depois no FC Porto foi a pessoa certa no momento certo. Ganhou tudo o que podia ganhar.

ZZ: Observador, treinador e agora... Presidente.

BM: O André é muito portista. Já estou aqui no Porto há muito anos e nos bastidores já se dizia há muito tempo que ele podia vir a ser o futuro presidente do clube. É uma pessoa muito coerente, com atitudes muito corretas, exímio na comunicação e no discurso. É uma pessoa de bem, apaixonada pelo clube e com ideias frescas.

«No balneário havia uma casa de banho só para o Jorge Costa»

ZZ: Ele que tem ao lado uma pessoa com quem se cruzou, o Jorge Costa. Qual era o papel dele no balneário?

BM: O Jorge é o líder. É um líder nato. Ele já nasceu líder. É uma coisa que não se explica.

ZZ: Ele liderava através de quê? Era da palavra? Ou do exemplo?

qO cesto do equipamento do Jorge Costa já vinha com café, jornal e sudoku. Tudo para ele
Bruno Moraes

BM: Acho que ele quase nunca precisou de palavras. Acho que as atitudes mostravam. «Falavam» mais do que as palavras. Vou dar-te um exemplo simples. Havia duas casas de banho no balneário, uma com a foto dele, que era para ele, e a outra para os outros jogadores [risos].

ZZ: Só para ele?

BM: Supostamente não, mas pronto [risos]. Dou-te outro, o nosso roupeiro colocava o cesto com os equipamentos dos jogadores todos num sítio e os jogadores iam lá buscar. O do Jorge, além de colocar lá no sítio dele, já vinha com jornal, já vinha com café, já vinha com tudo. Já vinha com o joguinho dele, ele jogava Sudoku [risos].

Jorge Costa e Bruno Moraes com os restantes jogadores do FC Porto @FC Porto

ZZ: Já prontinho para ele jogar.

BM: Tudo pronto para ele [risos]. Era um cara fantástico. Bastava um olhar ou uma palavra dele para as coisas irem ao sítio. Temos muitas histórias sobre a liderança dele. Aquela que o Mourinho já contou sobre o jogo com o Belenenses, em que estávamos a perder e o Mourinho estava revoltado ao intervalo. O Jorge disse-lhe: «Deixa que eu faço o trabalho sujo».

ZZ: Acha que essas características podem ser benéficas para o cargo que agora ocupa?

BM: Não tenho dúvidas disso. É um símbolo do FC Porto, uma pessoa forte na liderança, tem muita experiência como jogador e como treinador. Acho que o André Villas-Boas escolheu a pessoa certa. E acho que isso é o mais difícil. Escolher as pessoas certas, delegar as funções. Depois o resultado vai aparecer.

«É um privilégio treinar jogadores como Pepe ou Jorge Costa»

ZZ: Pegando nas grandes figuras com quem se cruzou. Teve o privilégio de se cruzar com o Pepe na fase inicial da carreira. Surpreende-o o trajeto que realizou?

BM: Não que ele tenha surpreendido, mas eu acho que ele foi muito inteligente e foi muito resiliente na carreira dele. Claro que as condições que ele tem como jogador são muito boas. Tem todos os atributos para um defesa de grande nível. Mas o atributo mais forte que eu reconheço no Pepe é a mentalidade. Conseguiu jogar ao mais alto nível com 41 anos. E foi melhorando ao longo dos anos. Eu lembro-me que, quando ele chegou, cometia alguns erros, como todos os defesas que se estão a adaptar a um nível FC Porto. Ele trabalhou muito, evoluiu muito. Nos últimos anos desfrutou mesmo da carreira.

ZZ: Que papel têm este tipo de jogadores para os treinadores? Quão importante é o papel de um Jorge Costa ou de um Pepe?

BM: É um papel muito importante. Um treinador que tem jogadores assim é privilegiado, porque facilita o trabalho do treinador. Há decisões que o treinador não consegue fazer com que os jogadores tenham uma resposta tão rápida dentro do campo.

@Bruno Moraes

ZZ: É uma extensão do treinador em campo.

BM: Exatamente. Ele percebe e consegue corrigir. Um líder, igual ao Pepe, por exemplo, faz a diferença toda numa defesa. A influência que tem, a forma como transmite tranquilidade à equipa, como passa a mensagem. Um jogador assim, além de evitar muitos problemas, resolve muitos outros que vão surgindo. É um privilégio ter um jogador assim na equipa.

«Ver o César Peixoto treinar na primeira liga motiva-me para lá chegar»

ZZ: Utilizando aqui a ponte dos ex-colegas, há outro treinador que conhece bem: César Peixoto.

BM: Jogámos juntos duas vezes. No FC Porto e no Gil Vicente.

ZZ: Percebia-se na altura esta paixão dele?

BM: O César era um jogador com uma inteligência fora do vulgar. Possuía algumas capacidades que eu também reconheço num treinador, como a liderança, a personalidade forte e as ideias bem vincadas. Isso eram características muito fortes no César. Depois, enquanto jogávamos no Gil, estivemos juntos a tirar o curso.

@Bruno Moraes

ZZ: Tiram o curso juntos?

BM: Ele começou, mas depois não deu sequência devido aos treinos. Já nessa altura dava para ver que ele gostava e que provavelmente ia seguir este caminho.

ZZ: Ele que começa no Varzim.

BM: Começa no Varzim e consegue salvar o clube da descida de divisão. Depois começou a fazer alguns trabalhos interessantes.

ZZ: Académica, Chaves, Moreirense, Paços de Ferreira e agora Moreirense novamente.

qO César está a fazer um início de temporada incrível
Bruno Moraes

BM: Está a fazer um início de época incrível. Um jogaço contra o Benfica. Eu acho que quem jogou futebol muitos anos, principalmente ao alto nível, tem tudo para ser um grande treinador. Além disso, é preciso ter humildade e paciência para evoluir noutras áreas.

ZZ: E ver um ex-colega de equipa a sair-se assim tão bem não alimenta ainda mais o bichinho de querer ser treinador?

BM: Sem dúvida que me anima e me motiva. Fico muito feliz pelo César, pela trajetória dele no futebol, por ser um colega de trabalho e um ex-companheiro de balneário. Motiva-me porque sei que posso chegar a esse nível e treinar equipas da Primeira Liga e daí em diante. Espero um dia chegar lá também.

Bruno Moraes, o treinador

ZZ: Já estamos a chegar aqui perto do fim. Se tivesse de caracterizar o Bruno Moraes como treinador, como é que o faria?

BM: Um treinador que prioriza a relação com os jogadores, que procura uma boa relação com os jogadores. Um líder para eles, mais do que a parte tática, mais do que a parte estratégica. Quero que os jogadores sintam vontade de correr por mim dentro do campo e de suar a camisola. Um treinador que é frontal, que sabe o que é estar do lado deles, que sabe o que eles passam e que sabe o que é preciso para ganhar jogos e títulos.

ZZ: Isso é influência direta de algum dos treinadores com quem se cruzou?

BM: Um pouco de cada. Eu aposto muito na relação, acho que é a base de tudo. Se o treinador não tiver relação de confiança, se não tiver abertura para poder cobrar, eu acho que não funciona. E a partir do momento em que a parte mental dos jogadores não estiver boa, automaticamente o corpo não vai reagir da melhor forma.

ZZ: Para terminarmos, acha que o 'Bruno treinador' gostava de poder contar com o 'Bruno jogador'?

BM: Acho que sim. Também era um líder dentro de campo. Eu acho que todos os treinadores que me deram um pouco mais de confiança e liberdade usufruíram um pouco disso. Eu olho para o Bruno jogador como um desses líderes dentro do campo e acho que teria um bom relacionamento. Mas preferia o Bruno depois dos 25 anos, o Bruno que chegou ao FC Porto e era o «camisa 9» da seleção brasileira na formação queria as coisas todas para ontem [risos].

@zerozero