3242,65 quilómetros separam Vila Nova de Gaia de Narva, terceira cidade mais populosa da Estónia. Um destino distante ao qual o leitor se deve estar a interrogar do porquê desta ligação inter-cidades. Nada mais, nada menos que Ricardo Afonso, jovem técnico, de 25 anos, que não pensou duas vezes em fazer a travessia rumo a um país onde procura marcar a diferença na I Liga da Estónia.
É numa sociedade conhecida pela produção cinematográfica - a adesão ao cinema é outra história -, «noites de 15 minutos» e pela fronteira com a Rússia, mas também pelo ameno ambiente para trabalhar e viver, que este gaiense vai expandindo as qualidades anteriormente demonstradas. Com uma carreira que começou a gatinhar há nove anos, a sede inesgotável de aprender e provar o seu valor já lhe aportou reconhecimento no futebol açoriano, depois de um começo aos 16 anos em clubes da AF Porto.
«Não tens idade para ser treinador, podes ir embora»
«Comecei com relatórios de FM numa brincadeirazinha com um amigo. Fazia relatórios... depois dizia sempre aos meus treinadores na formação: "Quando crescer quero ser treinador"», desvendou. Um caminho inicialmente trilhado de mãos dadas com o futebol de formação - dentro das quatro linhas -, que contou com um ou outro revés, fruto da desconfiança na tenra idade.
«Cheguei à beira do meu treinador de sub-17 e disse que gostava de começar a treinar. Moveram forças para me dar a possibilidade de começar os sub-9 e sub-12 do Canidelo», corria a época 2014/15. Uma amostra que não convenceu os mais céticos: «No final desse ano, o novo coordenador disse-me: "Não tens idade para ser treinador, podes ir embora.»
Um golpe passível de esmorecer a motivação de alguém tão jovem, que teve o efeito contrário, o do fortalecimento. Na temporada seguinte e com a ajuda de um antigo treinador de formação - Paulo Gentil -, coadjuvou o antigo mister em tudo que pôde, no Perafita. Dos relatórios na equipa que competia na AF Porto Divisão Liga Pro, à orquestração de treinos dos juniores, a bagagem foi crescendo com o aproximar da maioridade.
Seguiu-se o regresso ao Canidelo na mesma função - convém referir, pelas mãos do coordenador que entretanto mudou de ideias - em duas ocasiões distintas, além de experiências noutras paragens como Esmoriz, antes da mudança que podia atemorizar muitos, mas que não atemorizou Ricardo Afonso: a partida para ser adjunto do SC Ideal.
«Fui para os Açores sem saber quanto ia receber. Meti-me no avião, na altura da COVID e fui morar sozinho. Aos 22 anos, estava pela primeira vez fora da casa dos meus pais», contextualizou.
«Garantimos a manutenção no último jogo do Campeonato de Portugal, num período em que desenvolvi muitas capacidades. No final do ano, convidaram-me para renovar, só que apareceu o presidente de um clube da divisão abaixo [São Roque] que me diz: "Quero-te como treinador principal"», uma frase de impacto que alterou, mais uma vez, o trajeto de Ricardo.
«No trabalho que desenvolvi lá, tive das melhores coisas da minha carreira: jogar contra o Farense para a Taça de Portugal, com 22 anos», sumariou, em clara alusão à conquista da AF Angra Heroísmo Taça AFAH Graciosa, pelo Marítimo da Graciosa.
«A Estónia tem uma liga de oportunidades»
Entre essa conquista, o regresso ao Canidelo e a partida para a Estónia, o relógio acelerou todo o processo, depois de duas tentativas "falhadas": «A primeira vez estive perto da Chéquia, a segunda de Andorra e esta felizmente concretizou-se. Tive uma entrevista com o CEO do Narva Trans, fiz uma análise de jogo, eles gostaram e contrataram-me para adjunto, onde estive durante 12 jogos.»
Sobre a I Liga local, Ricardo Afonso ficou «surpreendido» com a qualidade encontrada, equiparando o top-4 à realidade da Liga 3 e as restantes equipas às equipas do Campeonato de Portugal: «Tem muito bons jogadores. Po exemplo, num dos últimos jogos da pré-época, frente ao St. Gilloise, um dos jogadores que marcou saiu deste campeonato: o Promise David. É uma liga de oportunidades.»
«Quanto ao clube, oferece todas as condições. Tenho acesso ao iScout, a um hotel onde podemos fazer SPA para a recuperação e a possibilidade de treinar em dois outros campos de relva natural. Além de um [campo] indoor, está a ser construído outro», garantiu.
Ferramentas que permitem encarar o dia a dia com otimismo, depois de consumada a saída de Miguel Moreira, anterior treinador dos estonianos a quem Ricardo se mostra agradecido: «O clube não me deixou sair. Ia ficar sem direitos se o fizesse... Falei com o Miguel, expliquei-lhe a situação e continuamos amigos. Ninguém espetou a faca a ninguém.»
«Objetivo é voltar às competições europeias a breve prazo»
Redefinido o cargo e de novo rosto principal de uma equipa técnica, o jovem técnico revelou ter um staff curto: apenas diretor desportivo e treinador de guarda-redes. Recursos humanos limitados que obrigam a desempenhar competências em áreas como a preparação física, mas que não retiram a ambição desportiva a nenhum dos intervenientes.
«O clube pretende ir às competições europeias a breve prazo, mas na atual época o objetivo é a manutenção», algo que parece estar a caminho de ser atingido.
Com sete pontos de vantagem para os lugares de despromoção e menos dois jogos face à concorrência abaixo, o impacto da sua orientação têm-se refletido nos quatro desafios que já soma ao leme.
«Gosto de uma equipa que seja compacta, sólida defensivamente, mas que depois não se vire só para o contra-ataque. Tento que a equipa saiba pausar o jogo, que seja capaz de ir aos três corredores do terreno... Aqui olham muito para a genialidade e acham que fazer coisas simples não é o melhor. Isso deve-se ao facto dos jogadores quererem subir de patamar. Para tal, precisas de números, de efetividade neste campeonato e nem sempre isso permite às equipas usar o cérebro», constatou.
5 títulos oficiais
«As equipas sentem-se confortáveis sem bola e é isso que estou a tentar mudar no Narva Trans com o que bebi em Portugal: oferecer coisas diferentes, algo que só as quatro melhores equipas de cá fazem. Criar uma identidade diferente, mas que também dê liberdade aos jogadores, de futebol positivo», cimentou.
E a juventude, foi algo bem visto pelos mais veteranos da equipa? «Acho que entrei bem, porque decidi mudar algumas coisas que senti que os jogadores iam gostar, mas claro que no início senti [algum ceticismo]. Vencemos logo nesse primeiro jogo, entenderam o que era a mensagem e marcámos cinco golos na segunda parte. A partir daí, o torcer de nariz acabou.»
Concluído o quarto jogo ao leme da equipa esta quarta-feira, Ricardo Afonso contabiliza três vitórias e um empate - frente ao campeão - com direito a trabalho de laboratório. Com sete jornadas e um jogo a meio para concluir, o treinador tem em Sérgio Conceição e Antonio Conte as maiores inspirações: «Olho para eles como vencedores natos.»
A idade e o percurso conferem legitimidade para sonhar. Na hora de exteriorizar o voo ideal a partir do banco, Ricardo Afonso concluiu de forma perentória: «O meu sonho é treinar em Itália: Serie A ou Serie B. Por agora, o sonho é acabar o campeonato em quinto!»