PARIS - Passaram-se quase 48 horas, mas o sorriso de Filipa Martins permanece igual, num misto de orgulho e incredulidade. É verdade, a ginasta portuguesa apurou-se para a final do concurso de all-around da ginástica artística, nos Jogos Olímpicos de Paris. E não se apurou apenas, fê-lo com distinção, alcançando o 16.º lugar, entre as 24 finalistas.
Nada mau para quem temeu não conseguir sequer chegar à terceira participação olímpica, depois de cinco operações aos tornozelos, e de ter vivido o período mais negro nos dois anos entre Tóquio 2020 e o Campeonato do Mundo que apurou para Paris 2024, ao qual chegou sem grandes expectativas.
Foi sobre esse momento mais duro, mas também a forma como vai viver a final que a ginasta portuguesa falou em exclusivo com A BOLA, minutos antes da final do all-around por equipas que consagrou o EUA de Simone Biles como campeãs olímpicas.
- Dois dias depois, já caiu a ficha daquilo que conseguiu?
- [sorriso rasgado] Sim e não. Tenho recebido muito carinho dos portugueses, não só da família, mas também de todo o povo português. Talvez até de pessoas que nem imaginava que vissem a nossa modalidade, nem que acompanhassem de tão perto. Mas acho que passados dois dias, conseguimos ver a grandiosidade daquilo que fizemos, com tanta gente a dar-nos os parabéns e a mostrar-se contente pelo nosso resultado. É muito bom sentir isso.
- Que mensagens mais inesperadas é que recebeu?
- Não sei… de alguns famosos, da Cristina Ferreira, por exemplo. Não estava à espera. E com ela a partilhar, vários atores e famosos da televisão enviaram mensagem também. Foi muito bom.
- Essa foi a maior diferença destes dias, desde que se apurou para a final, em relação a um dia normal?
- Sim, foi isso. Tentamos manter-nos na mesma focados, porque agora o corpo também já não recupera como antigamente. Agora é tentar recuperar e voltar aos treinos. Já os retomámos, depois de ontem [segunda-feira] termos feito uma pausa. E vamos preparar para a final e tentar manter o foco. Acho que foi muito entusiasmo naquele dia e no dia seguinte e continuo a receber mensagens - o que é ótimo! Mas agora tenho de tentar largar um bocadinho mais o telefone, focar nos treinos e na preparação. Porque este telefone não pára! É todos os segundos! [gargalhada] É muito bom, mas chega uma altura em que também temos de seguir.
- Disse que o corpo já não recupera da mesma forma. Tem 28 anos, é muito nova, mas para a ginástica é uma idade pouco habitual. E vai ser a atleta mais velha na final… Qual é o segredo para a longevidade?
- Não há segredo. Quanto mais velhas ficamos, também vamos conhecendo cada vez melhor o nosso corpo e tentando adaptar o treino. Já sabemos que demoramos sempre mais a recuperar. Se calhar nos meus primeiros Jogos Olímpicos, no dia seguinte estava ótima, e agora estou no segundo dia e ainda estou a tentar tirar a ferrugem e as mazelas da prova [risos]. Fico sempre com os pés um bocadinho mais massacrados, porque é onde tenho mais cirurgias. Por isso, o treino é mais banho-maria e recuperação, para estar o melhor possível no dia da final.
- Precisa de mais recuperação do que treino, neste momento?
- Depois de uma competição temos sempre uma carga e uma descarga emocional, e parece que o corpo está de ressaca da competição. Claro que precisamos de treino, mas o principal treino foi feito na preparação até aqui. Por isso, treinar um bocadinho mais ou menos nesta altura não faz tanta diferença. O trabalho está feito para trás, não é agora que vamos conseguir estar melhores ou piores na final.
- Olhando para trás, para todo este percurso na ginástica e as cinco operações aos tornozelos de que já falou, quais foram os momentos mais complicados?
- As lesões são sempre os momentos mais complicados. Pela lesão, a recuperação, todo o processo que passamos, e às vezes, quando passamos o processo de recuperação e continuamos mal… Esses são os momentos que nos deixam mais em baixo. Tentamos fazer tudo aquilo que podemos para estar bem, pedimos ajuda e quando chegamos aos momentos mais importantes, afinal ainda não estamos bem.
- Mas houve um momento mais difícil?
- Talvez depois dos Jogos de Tóquio, até ao Campeonato do Mundo de apuramento para Paris 2024, que foi em outubro do ano passado. Foram os dois anos mais complicados para mim, para o meu corpo, para a minha saúde mental. Fui-me um bocadinho abaixo. Porque tentamos dar sempre o nosso melhor, muitas vezes temos sucesso, e quando há muitas competições seguidas que nos correm mal, porque estamos com lesões que não nos deixam competir como queremos, isso afeta. E eu tive ali um processo durante dois anos que me deitou muito abaixo.
- E como se ultrapassam esses momentos?
- Eu tentei sempre um dia de cada vez. “Amanhã estarei melhor, amanhã estarei melhor, amanhã estarei melhor”… E passei períodos mais longos um bocado desmotivada. Não fazia nada para que acontecesse o contrário, mas estava sempre à espera que a motivação voltasse. Porque normalmente começamos a treinar para competições ou temos algum objetivo mais específico e a motivação vem automaticamente. Mas ali senti que estava desmotivada, um bocado em baixo e sempre com dor... Foi um processo que fui ultrapassando, mas foi duro.
- Isso foi antes do apuramento que a trouxe a Paris.
- Sim. Fui para o Campeonato do Mundo, que apurava para os Jogos, com o pensamento: se der, dá, se não der, não dá. Porque temos sempre objetivos muito específicos, queremos muito uma coisa. E eu andava muito com altos e baixos, se não desse, acho que ia correr muito mal. Por isso, na minha cabeça, depois desses dois anos em que tinha passado tão mal, meti mesmo na cabeça que ia fazer o meu melhor, mas se não desse, estava tudo ok.
- Falou na questão da saúde mental que foi exposta de forma muito clara pela Simone Biles durante os Jogos Olímpicos de Tóquio. A Filipa procurou ajuda nessa fase?
- Para ser honesta, não. Sempre fui um bocadinho contra psicólogos [risos]. Nunca experimentei para saber se gosto, mas sempre me deixei ficar mais na minha. Acredito muito nas minhas coisas e faço da forma que acho que deve ser. Não sei se foi sempre uma decisão certa, se calhar a maior parte delas foi errada, mas sempre me dei tempo para mim, para pensar, para me ouvir… E se calhar demorei mais tempo que se tivesse pedido ajuda, mas acho que todos os processos pelos quais passei até aqui me ajudaram e fizeram de mim a pessoa que eu sou. Mais forte ou menos forte, não sei [mais risos].
- Agora durante a final vai conseguir desfrutar ou o foco da competição vai estar tão aceso que é competir e competir?
- Eu acho que vou conseguir desfrutar muito. O nosso principal objetivo está mais do que concretizado. Não imaginámos que íamos conseguir apurar para a final no lugar em que nos apurámos. O nosso grande objetivo era a final, sabíamos que era muito difícil estar, por isso achávamos que íamos ficar ali entre o 20.º e o 27.º, se corresse tudo bem. Entre entrar na final ou não. Apurar em 16.º deixou-me… Wow! Como é que eu vou superar isto agora? Para mim, estou mais do que concretizada e realizada. Nunca saímos de uma competição tão contentes e realizados, por todo o processo que fizemos até aqui.
- Mas depois de se apurar em 16.ª…
- Agora não interessa mesmo o lugar para mim. Se fico em último, ou mais para cima, ou no mesmo lugar. Estamos super-contentes, por isso vamos mesmo desfrutar da competição, entrar naquela Arena incrível mais uma vez e aproveitar os momentos com outras atletas diferentes. Eu vou dar o meu melhor lá dentro, como dou sempre, pode correr pior, ou melhor.
- É mesmo para aproveitar, então?
- Sim! Nunca estive numa final nos Jogos Olímpicos por isso, quero aproveitar cada momento. Entre a 24.ª e a 14.ª, ou 15.ª, não há muita diferença de pontuação. Às vezes basta uma queda, mais um passinho… É o que for!