PARIS – Na vida de Iúri, tudo anda à volta da bicicleta. São voltas, voltas e mais voltas para voltar sempre ao ponto de partida. E retomar. E dar mais uma voltinha, num intrincado labor como a mais delicada peça de filigrana.
E é graças a esse ciclo hipnotizante que, na estreia de Portugal no ciclismo de pista, Iúri Leitão consegue conquistar uma medalha de prata. No Omnium. Essa palavra proveniente do latim que significa ‘todos à volta de uma coisa’.
São voltas e voltas aquelas que o português de 26 anos dá no velódromo de Saint-Quentin-en-Yvelines. Uma localidade que fica agora na história do desporto nacional por ter sido ali que Portugal conquistou a 30.ª medalha olímpica da sua história.
O menino de Viana do Castelo que começou a andar de bicicleta aos seis anos rolou, rolou e voltou a rolar. Duas décadas em cima de bicicletas que já estavam marcadas no currículo com três títulos europeus de Scratch e o título Mundial de Omnium conquistado em Glasgow, em 2023. Agora passam a ter também a glória olímpica associada.
Só contando as conquistas em pista. Porque há outras voltas. O ciclista faz também parte do pelotão do World Tour, integrando a equipa espanhola da Caja Rural.
E se no currículo as marcas são muitas, no corpo de Iúri são ainda mais. Não há volta a dar.
Enquanto fala com os jornalistas, serenamente, já com a medalha ao peito, é possível ver mais de perto aquele rapaz de 1,75 metros que parece um monstro enquanto dá voltas e mais voltas na pista. E de tão perto percebe-se que aquela medalha lhe custou também muita pele esfolada.
Há cicatrizes e mais cicatrizes nas mãos. Há uma cicatriz no sobrolho esquerdo. O curto espaço entre o nariz e o lábio superior tem cicatrizes a perder de conta. Iúri só tem as mãos e a cara à mostra. Mas não é difícil de imaginar que pernas e braços tenham tantas cicatrizes mais.
Mas nada lhe dói. Não hoje. Nem amanhã ou depois – até porque ainda vai voltar à pista no sábado. A prata cura tudo.
Sempre a pontuar
Hipnotizante. Alucinante. Vertiginoso.
É impossível ficar indiferente a uma prova de ciclismo de pista. Mesmo que não se perceba nada do que está ali a acontecer à volta daquela pista circular com desníveis que mais parecem paredes verticais, o que se passa naquela pista é de uma intensidade de arrepiar.
Durante as quatro provas que formam o Omnium, disputadas no espaço de cerca de três horas, a velocidades superiores a 60 km/h, Iúri Leitão também não mostra receio. Nem pode. Porque qualquer hesitação, numa bicicleta sem travões e com aquelas velocidades, pode ser fatal.
A primeira prova disputada pelos 22 ciclistas no velódromo nacional de Paris foi Scratch. Uma corrida pura de 10 minutos, em que o primeiro a concluir o percurso ganha 40 pontos, o português foi sétimo classificado, somando 28, enquanto o francês Benjamin Thomas ficou logo em primeiro.
Seguiu-se a corrida de ritmo, na qual Iúri Leitão conseguiu mais 38 pontos, ao ser o segundo mais pontuado, atrás do belga Fabio van den Bossche, o que lhe permitiu subir provisoriamente ao terceiro lugar.
Na corrida de eliminação, em que o último classificado de duas em duas voltas é afastado, o ciclista luso ficou no sétimo lugar. Nessa prova o português ainda reclamou por não ter ouvido o sino que dá o aviso de que na volta seguinte haverá eliminação, mas de nada lhe valeu.
Ainda assim, manteve-se em posição de pódio – terceiro com 94 pontos -, ainda atrás do belga (106) e do francês Benjamin Thomas (98), e com os mesmos pontos do que o quarto, o alemão Tim Teutenberg e seis de vantagem para o britânico Ethan Hayter, que era um dos favoritos à vitória.
Voltamos às voltas?
Tudo se decidia na corrida por pontos, numa prova de 100 voltas com 10 sprints bonificados. No terceiro sprint, o português foi o primeiro, e segundo logo no seguinte, o que lhe permitiu reforçar o terceiro lugar e aproximar-se do segundo, uma vez que também conseguiu os 20 pontos extra por ter conseguido ‘dobrar’ o pelotão principal.
A meio da prova, Iúri estava a um ponto da prata e a dois do ouro e parecia óbvio que era esse o lugar que tinha na mira e que o francês seria o principal adversário, cenário que ganhou mais força a 27 voltas do final, quando subiu a segundo lugar, com 20 pontos de vantagem sobre o terceiro e a quatro pontos do líder francês.
Mas como isto dá muitas voltas, três voltas depois o líder caiu, para desespero das centenas de adeptos franceses. Quando há uma queda, ou um problema mecânico, porém, os ciclistas têm cinco voltas para voltar à pista. Thomas restabeleceu-se e voltou em força para ainda pontuar nos dois últimos sprints e assegurar que o ouro ficava mesmo em casa.
A prata essa, volta para Portugal. Volta ao peito de Iúri Leitão. E certamente que quando o ciclista voltar a entrar em prova, serão muito mais os portugueses a saber com quantas voltas se faz o Omnium.
É que não há volta a dar!