Aos 16 anos, já todos sabem o seu nome. Erica Meg é um fenómeno de precocidade num futebol português onde é cada vez menos frequente que jovens de tão tenra idade surjam em plantéis seniores. A inglesa desafiou as probabilidades e ingressou na equipa principal do Valadares Gaia com apenas 15 anos, depois de uma experiência a jogar no Campeonato Nacional de sub-15... masculino.
A poucas horas da estreia de Erica no Campeonato do Mundo de sub-17 feminino com a Inglaterra, o zerozero viajou até aos primórdios de uma carreira ainda curta, mas para a qual se apontam os mais altos voos. O nosso portal encontrou em Hugo Rocha, o homem responsável por lançar a jovem nos sub-15 do Leixões, o testemunho que permite perceber porque é que Erica é frequentemente chamada aos trabalhos da Inglaterra e já dá cartas na elite do futebol português com apenas 16 anos.
«Torci o nariz, mas quando comecei a trabalhar com ela...»
Vamos ao contexto. Erica Meg chegou ao Leixões em 2020, depois de ter passado pelo FC Foz, mas só em 2022/23 se cruzou com Hugo Rocha, um jovem treinador a quem lhe foi confiada a missão de guiar os Bebés do Mar ao campeonato nacional. Porém, como certo dia afirmou John Lennon, a vida é o que acontece enquanto fazemos planos. Em Matosinhos planeava-se uma época de competição na distrital da Associação de Futebol do Porto quando tudo mudou.
«Vou para o Leixões para um projeto de subida ao nacional e o Leixões é repescado, porque tinha ficado em segundo lugar na fase de subida da AF Porto e foi repescado para o campeonato nacional. Inicialmente estávamos a preparar um plantel para uma distrital da AF Porto, um plantel de subida», recordou Hugo, em declarações ao zerozero.
Olhando para o plantel, o treinador apercebeu-se de que, no meio dos rapazes, havia esta jovem inglesa. Não ficou imediatamente convencido. «Quando me dizem que há uma jogadora que é muito boa e que tem todas as condições de ficar na primeira divisão... Eu não a conhecia e, sou sincero, torci um pouco o nariz. Não é ser preconceituoso, até porque já tinha tido outras jogadoras no passado, mas para um projeto de subida torci um bocadinho o nariz, no sentido de não saber se ela se iria dar bem e se a dinâmica de grupo iria funcionar», disse.
Não se deve julgar um livro pela capa e Hugo Rocha rapidamente percebeu que estava perante alguém muito, muito especial. «Inicialmente fui um bocadinho crítico nesse sentido, mas quando comecei a trabalhar com ela... não, ela tem que ficar. É diferenciada», recordou. Nariz de volta ao sítio e dúvidas mais do que dissipadas: esta menina é caso sério.
Erica não começou a pré-temporada ao mesmo tempo que os colegas, mas por motivos que ajudam a atestar a sua qualidade. «Ela estava num estágio, porque fazia torneios com o Benfica, e não iniciou a pré-época com os outros. Quando ela inicia, penso que uma semana mais tarde, bastou-me ver o primeiro treino», explicou Hugo. Tão simples como um treino. Quantos atletas são capazes de causar tamanha impressão imediata? Uma mão cheia deve chegar para fazer as contas.
O jovem treinador, que hoje orienta os sub-17 do S. Félix Marinha, passou a explicar o que via quando olhava para uma Erica de apenas 14 anos à data: «Tinha que ficar, porque a nível da qualidade técnica, controlo de bola, o passe preciso dela... Mais tarde venho-me também a aperceber de caraterísticas como a visão de jogo que tem, a capacidade defensiva que tem. Foram indicadores logo de que era diferenciada e tão diferenciada é que nós depois fomos para o campeonato nacional, que numa primeira fase nos estava a correr minimamente bem, e ela acaba por ser o nosso reforço de inverno. Havia uma incompatibilidade à qual a própria federação não conseguia responder, que era se ela podia ou não jogar o campeonato nacional no masculino».
Este problema com a Federação Portuguesa de Futebol (FPF) impediu que Erica Meg fosse opção tantas vezes quanto o treinador gostaria. A estreia acontece no final de novembro, frente ao FC Porto. «Ela entra algures na segunda parte. É estreada por mim, o que me deu muito orgulho. Tem um valor incrível. Aquele jogo foi televisionado pelo Porto Canal e ela foi destacada pelos comentadores, uma menina no meio de homens do campeonato nacional sub-15 e o jogo que ela acaba por fazer», relembrou.
«Uma menina no meio de homens», mas uma menina com armas para se impor. E nem na questão onde muitas vezes são apontadas diferenças entre os dois géneros, a física, Erica se encolheu: «Não se notava diferença nenhuma. Ela para além de fazer o treino do clube, sempre trabalhou fora e para o futebol. Diria que ela vive para o futebol. Fisicamente não se sentia [diferença] e posso dizer que é até das melhores jogadoras que vi com capacidade defensiva e de recuperação. Comigo jogava a 10, mas não sendo ela a protagonista a nível defensivo, tem uma capacidade defensiva e de recuperação de bola acima da média. Embora ela seja uma jogadora criativa, participava ativamente nas fases defensivas recuperando bola e ajudando nas transições. Era completamente incrível para a idade dela.»«Diferenciada», como nos contou Hugo no início da conversa. E diferenciada a um nível que levou o treinador a afirmar sem hesitação: «É a melhor jogadora com quem trabalhei.»
A menina tímida e altamente focada que pode conquistar o Mundo
A conversa fluiu e levou-nos, de forma natural, para a personalidade de Erica. Os pés falam muito dentro do campo, mas não dizem tudo. Para que sejam eles a fazer a conversa aos fins de semana, há todo um trabalho semanal que nos foi descrito por Hugo Rocha e que nos faz até duvidar se estamos mesmo a falar de uma jogadora de 16 anos.
«Comprometida no trabalho. Chega ao treino e é uma sénior autêntica, se calhar há seniores que não têm essa capacidade. Comprometida e com um foco enorme no trabalho, não se deixa distrair com nada. Sempre que tentávamos brincar e criar dinâmicas de grupo com ela, para também tentar introduzi-la no grupo, que era de rapazes, ela era um bocadinho envergonhada e reservada. Mas é muito disponível para o trabalho, sempre foi o foco. Sempre a vi como uma jogadora de grande capacidade de trabalho, focada no que queria e com uma paixão enorme em jogar futebol, com um sorriso rasgado sempre que distribuíamos a convocatória e ela estava nela», retratou-nos o técnico.
Já há vários anos em Portugal, Erica fala e compreende o português, mas está mais confortável a pensar e executar na língua materna, o inglês. «Ela fala e percebe português, mas é tímida. A comunicação por vezes tem de ser em inglês, porque se sente mais confortável a pensar em inglês. É muito focada no grupo de trabalho, não se distrai com nada, não se distraiu no meio dos rapazes e falava com eles o que tinha de falar. É sempre de trato muito fácil e percebe rapidamente os exercícios», afirmou Hugo.
Depois da temporada no Leixões, o caminho de Erica Meg passou definitivamente para o futebol feminino e o destino da jovem cruzou-se com o Valadares Gaia. «Foi um bocadinho de surpresa, porque pensávamos todos que ela ia para o Benfica», atirou o treinador, que recordou ainda uma brincadeira que, ao mesmo tempo, tinha uma boa dose de seriedade: «Entre nós, equipa técnica, e mesmo a falar com ela brincávamos e dizíamos que ela um dia se ia lembrar das nossas palavras e ia ser a melhor jogadora do Mundo. Para mim, a Erica tem um enorme potencial e não sei se não estamos a falar de uma futura melhor do Mundo. Achamos mesmo que tem capacidade para isso.»
Dois Campeonatos da Europa de sub-17 - 2023 e 2024 - já ficaram para trás, mas agora o palco é outro e é maior, é mundial. Na estreia em Campeonatos do Mundo, Erica é a única representante da Liga BPI na prova que se joga na República Dominicana. O primeiro jogo acontece já esta noite, a partir da 00h00, frente ao Quénia.