O dia 11 de março de 2004 fica marcado pelos Atentados de Madrid, realizados pela Al Qaeda, e que marcaram a história de Espanha, sendo inclusivamente decisivos para o triunfo do PSOE nas eleições legislativas, que se realizaram somente três dias depois. Na esfera política, o governo, ainda liderado por José María Aznar, sustentava que a ETA teria sido a autora da tragédia, tese que acabou por desabar com o passar dos dias. Mariano Rajoy perdera para José Luís Rodríguez Zapatero o ato eleitoral, quando se esperava uma continuidade do Partido Popular na liderança da governação. Foi um giro radical e que ficou na memória de quem o vivenciou. No entanto, o que tem isto a ver com o futebol, ou com o desporto no seu geral? Já lá vamos.

Ninguém estava à espera que o sistema de comboios de Madrid fosse atacado e vitimasse 192 pessoas. Na estação da Atocha, o caos estava instalado e a mancha de sangue era notória. Várias unidades policiais foram chamadas ao local. Entre os membros da autoridade, apresentou-se Julián Calero, polícia local que se encontrava a tomar o pequeno almoço num bar, com o seu colega Julio. Aqui está o elo de ligação entre a monstruosidade ocorrida e o futebol. Julián Calero, outrora jogador com uma carreira que não entrará nos anais do desporto rei, hoje em dia é um treinador consagrado e elogiado, mas aquele 11 de março ficar-lhe-á na memória para todo o sempre:

«O que vivi mudou a minha vida e levo-o sempre comigo. É a mochila que tenho de levar nesta vida. As pessoas andavam de um lado para o outro, desorientadas, com as caras negras das cinzas, do fumo, muitas delas ensanguentadas, pareciam verdadeiros zombies… Estávamos a entrar na zona do horror e tínhamos consciência disso. Eu só pensava em ajudar, em multiplicar-me, em não pensar. Parecia um pesadelo, um sonho mau», afirmou o natural da capital espanhola ao jornal Marca, no artigo que celebra os 20 anos da atrocidade.

Julián Calero já era treinador na altura. Orientava os juvenis do Parla, no qual iniciara a sua carreira de futebolista. No dia 16 de março de 2004 tinha jogo e não faltou, apesar da sua cabeça e os seus pensamentos estarem em outro lugar:

«Ainda não tínhamos entrado em campo há 15 minutos quando marcámos o golo. Sem me aperceber, como ainda estava – e muitas vezes estou – na minha nuvem, a nuvem de Atocha, todos os meus jogadores vieram ao banco para me abraçar», referiu na mesma entrevista.

O nome deste técnico é desconhecido para muitos, especialmente fora de Espanha, mas representa na perfeição o que é a evolução de um profissional desde o ‘barro’, sem medo de dar um passo atrás ou de arriscar. Julián Calero até já trabalhou em Portugal, mas poucos se deram conta.

A sua primeira aventura enquanto treinador principal (depois de ter sido adjunto na Rússia), foi precisamente no Parla, conseguindo em 2011/12 um quarto posto no Grupo 7 da Tercera División, que contava com o Fuenlabrada como cabeça de cartaz. Já na temporada seguinte, Julián Calero esteve em dois projetos. Assumiu a turma B do Alcorcón e em seguida seguiu Luis Milla rumo aos Emirados Árabes Unidos, sendo adjunto do antigo internacional espanhol no Al Jazira.

Poucos meses depois regressou a Espanha, novamente para a Tercera División e para o Grupo 7, liderando o projeto do Atlético de Pinto, finalizando a época no décimo quatro lugar. Apesar da posição tímida, as suas valências foram-lhe reconhecidas e deu o seu primeiro grande salto. No dia 6 de maio de 2014, Pinto da Costa apresentou Julen Lopetegui como novo treinador principal do FC Porto, numa mudança de projeto por parte dos dragões. O antigo guarda-redes brilhou com os Sub-21 de Espanha e era a aposta forte do antigo dirigente para uma nova era. Quem estava ao seu lado? Julián Calero, que assumia o posto de adjunto do hoje em dia técnico do West Ham United.

A passagem de Julen Lopetegui pelo Dragão não foi extraordinária, marcada por alguns investimentos fortes, mas resultados curtos (embora tenham existido equipas técnicas que fizeram bem pior). Julián Calero ficou pelo Olival por uma temporada e meia, sensivelmente. Após mais uma época como auxiliar, desta vez de Fernando Hierro, no Real Oviedo (e na seleção de Espanha), decidiu que era hora de voltar a liderar uma equipa.

A partir daqui falamos de uma trajetória ascendente. Em 2017/18, com o Navalcarnero, conseguiu um sexto posto no Grupo 1 da Segunda División B. Já em 2019/20, alcançou o quinto lugar com o Rayo Majadahonda (saiu em março), na mesma divisão, resultados que acabaram por impressionar. O Burgos, cujo diretor desportivo era Michu, acabou por contratá-lo, na intenção de transformar o clube em algo melhor, u pelo menos estável, já que as dificuldades financeiras que existiam estavam a colocar o clube numa situação aflitiva. Julián Calero acabou por não desiludir e desde aí que o Burgos se encontra na La Liga Hypermotion, conseguindo a promoção logo ‘à primeira’.

Ficou na cidade de Castela e Leão por mais dois anos, onde conquistou dois décimos primeiros lugares, dando a firmeza necessária ao projeto, assumido em seguida por Jon Pérez Bolo (outro que começou por baixo). Julián Calero transformou-se num ídolo do clube. A sua despedida ficou marcada por lágrimas e aplausos da imprensa:

«Estava convencido de que levaria a equipa para a Primeira Divisão, não sei quando, mas estava convencido disso. Esse sonho ficou um pouco incompleto, porque não será possível para mim, mas desejo ao Burgos que um dia seja assim. Não sei quando, mas tenho a certeza de que hei-de voltar. Estou muito orgulhoso por ter pertencido a um grupo de pessoas que salvou este clube de um desaparecimento certo. Cada um de nós à sua maneira, eu como treinador, mas houve muitas outras pessoas que também foram salvadoras de um clube que estava condenado a desaparecer sem dúvida na época 20/21. Por isso, obrigado a todos e a cada um dos 80 jogadores que passaram pelas minhas mãos nestas épocas. Obrigado do fundo do coração porque foram incríveis. Vocês foram a espada Tizona do Cid para ir a todas as batalhas defender o seu escudo».

Foi Julián Calero quem optou por sair, já que tinha uma proposta de renovação de contrato para as duas temporadas seguintes. A partir daí, passou a ser um dos nomes mais cobiçados no mercado, dentro da La Liga Hypermotion. O técnico ainda não apresentava traquejo para um emblema da La Liga (mesmo sendo o seu sonho), apesar de lhe ser reconhecido um talento natural para evoluir equipas, ao mesmo tempo que desenvolvia jogadores, virtudes trabalhadas enquanto estava em camadas de formação, passando pelo Atlético de Madrid e Real Madrid, por exemplo.

Víctor Sánchez foi o segundo nome a cair em 2023/24 no segundo escalão, deixando o assento do Cartagena livre, no dia 23 de setembro de 2023. O plantel era manifestamente fraco, com a equipa a ter objetivos humildes, centrada na luta pela manutenção. Podemos considerar que foi um passo atrás, quanto muito ao lado, mas foi o possível. No entanto, quando se contrata Julián Calero tem que se pensar além do mínimo. O efesé terminou a La Liga Hypermotion na décima quinta posição, seis pontos acima da zona de despromoção, atingindo relativamente rápido a tranquilidade. Nota para o facto de Iván Calero (hoje em dia no histórico Zaragoza), filho do protagonista deste artigo, ter integrado o plantel, sendo que já estava presente anteriormente à chegada do seu pai.

O trabalho foi descrito como notável e confirmou que Julián Calero é um treinador de uma gama elevada e merecedor do passo seguinte. Quem estava atento era Felipe Miñambres, diretor desportivo do Levante, que o contratou no final da época. O seu sonho, Claudio Giráldez, ficou no Celta de Vigo, e o clube da Comunidade Valenciana foi obrigada a optar por um outro nome. Depois de Javier Calleja ter falhado o play-off de promoção (demitido a meio da época e substituído pelo próprio Felipe Miñambres), o Levante sabia que tinha que baixar o seu orçamento e que a luta pela promoção direta não poderia ser o objetivo primordial. Teria que se pensar a médio a largo prazo, apostando em nomes mais humildes e nos frutos que a formação poderia dar. Julián Calero encaixa perfeitamente neste estilo. Nunca foi habituado a trabalhar com muito e a soberba ficou sempre fora dos seus projetos.

Até ao momento, o Levante ocupa a nona posição da tabela classificativa. Não existem portugueses no plantel, mas há vários jovens que estão a conquistar a sua posição: Xavi Grande, Carlos Espí, Víctor Fernández ou Borja Cortina têm todos menos de 20 anos, mas já somam minutos pelos A, onde deverão acabar por ser importantes. A grande estrela é Carlos Álvarez, médio ofensivo com muita liberdade de movimentos, capaz de partir de uma ala, rompendo linhas e com uma capacidade acima da média para levar o jogo para a frente. A somar ao que oferece à produção de jogo, também conta com números, levando três golos e três assistências em 10 desafios. Chegou do Sevilha em 2023, onde era considerado a grande promessa do conjunto andaluz. Em breve dará o salto para a La Liga, já que os observadores não são ‘cegos’.

O futebol de Julián Calero não é o mais atrativo e possivelmente poucos vão assistir a um jogo do Levante para se deleitarem. Afinal, há 90% de possibilidades de estar a passar uma partida mais divertida e interessante na televisão à mesma hora. O técnico opta pela segurança defensiva, dando primazia a esse momento. Para ele, se não existir um bom funcionamento defensivo, é complicado obter resultados. O trabalho defensivo é sobejamente conhecido como o seu ponto forte. Será algo que se acabará por verificar ao longo de 2024/25.

Julián Calero também é conhecido por ser o autor de várias frases que acabaram por ser virais, mas que explicam na perfeição a sua maneira de ser, como por exemplo:

«Quando se ganha, é-se muito bonito, mede-se 1,90 m e tem-se umas franjas fantásticas… Mas não se tem! Eu tenho 1,73, sou careca e sou o que sou».

Ou:

«Estamos a anormalizar o futebol. Há uma tendência para utilizar palavras pouco compreensíveis, demasiado complicadas, para pensar demasiado em coisas que não têm muito, para olhar para o fundo do frasco quando se sai da superfície… Num balneário, podemos encontrar pessoas com uma carreira e pessoas que têm dificuldade em ler e escrever, porque foi essa a sua educação e a sua base. Não é para os menosprezar, longe disso. Então, para onde se vai, para mais ou para menos? É preferível ir para o menos e ser compreendido por toda a gente».

O espanhol é ‘gente’ simples e não procura grandes floreados. É precisamente isto que o próprio transmite em campo e mostrou ao longo da carreira. Julián Calero não é a mesma pessoa desde aquele 11 de março de 2004, mas os seus princípios continuam os mesmos, dentro e fora do campo. Aos 53 anos pode ser o próximo técnico a dar o salto para a La Liga, algo que Luis Carrión atingiu de 2023/24 para 2024/25, tendo sido despedido recentemente. Porém, se num escalão inferior, a sua simplicidade é uma vantagem, no meio dos ‘tubarões’ pode ser vista de uma maneira distinta, num futebol cada vez mais moderno e com conceitos cada vez mais complexos. Uma carreira a seguir.