“Às vezes tens de fazer coisas estúpidas, como usar um cabelo de galinha, para construir a tua marca”. A frase quase poderia estar na lápide de Jake Paul, tal é a forma como parece resumir muito do ideário do criador de conteúdo norte-americano.
Criador de conteúdo? Ou pugilista profissional? Ou would-be boxer, aspirante a pugilista, pugilista em intenções, como é chamado por muita imprensa internacional, como a BBC?
Jake Paul, o homem que se tornou conhecido por fazer vídeos virais na internet, estrela do defunto Vine e depois do Youtube, participará num dos acontecimentos desportivos que maior interesse mediático gera em 2024. Um combate de boxe com mais de 60.000 pessoas nas bancadas, milhões em casa, rios de dinheiro sendo pagos aos participantes.
Suficiente para deixar de ser youtuber e passar a ser pugilista? Quem sabe. Na verdade, será que importa?
“Estou aqui para fazer 40 milhões de dólares e arrasar uma lenda", diz Paul, que não esconde as prioridades. “Aqui” refere-se a Arlington, Texas. A “lenda” é Mike Tyson, um dos mais míticos e controversos desportistas da história.
Na madrugada de sábado, 16 de novembro, o AT&T Stadium abrirá as portas para o Jake Paul vs Mike Tyson. Youtuber feito pugilista contra pugilista retirado que sai da reforma. Um combate que, oficialmente, foi declarado como profissional pelas autoridades competentes. Uma máquina de fazer dinheiro, conteúdo em cima de conteúdo.
O evento é apadrinhado, patrocinado e transmitido pela Netflix. Num dos vídeos promocionais do serão, anuncia-se que “nunca houve uma noite como esta”, antevê-se “o regresso da era dourada do boxe”. O “disruptor”, Jake Paul, contra o baddest man on the planet, Mike Tyson.
As “prostitutas virais”
Entrar nas entranhas deste combate é como cruzar um portão que dá acesso a um universo paralelo, um outro mundo. Tudo parece tão grandioso — “the BIGGEST fight ever” — que parece um exagero face à realidade. Ou é a realidade que se molda ao exagero até o exagero ser real?
Jake Paul diz que é “a pessoa que mais tem feito para promover o desporto mundial”. Jura que tornar-se-á “num pugilista mais lendário que Muhammad Ali”. E quem somos nós para o contrariar?
Natural do Ohio, Paul fez tanto dinheiro, ainda adolescente, com conteúdo postado na internet — exemplo: “Afundei o carro do meu amigo e surpreendi-o comprando um novo” — que, aos 18 anos, adquiriu uma casa de mais de €7 milhões. Menos de uma década depois, este apoiante de Trump surge em segundo na lista da Forbes que elenca as estrelas do Youtube mais bem pagas.
Ah, e é 46.º no ranking Forbes para desportistas que mais dinheiro encaixaram. Isto porque, a partir de 2020, o norte-americano começou a protagonizar combates de boxe.
E é aqui que entra Mike Tyson. Jake já realizou 11 combates — só um deles contra um adversário mais novo e que fosse, de facto, um pugilista profissional —, mas, com esta ocasião, pretender “saltar para outro nível”. De seguida, deseja desafiar o campeão Canelo Álvarez, garante.
Toda a promoção do Paul vs Tyson é feita nas bases deste universo de conteúdo em cima de conteúdo. Ou é viral ou não existe. Talvez seja o próprio Jake quem descreve tudo isto melhor.
“Somos como prostitutas virais. Fazemos conteúdos com os nossos telefones, editamos, postamos na internet e deixamos que as pessoas desfrutem”.
Ao longo do seu trajeto no boxe, o qual inclui triunfos contra Nate Robinson, ex-jogador da NBA, Jake Paul tem sofrido várias acusações quanto à veracidade e, digamos, espontaneidade dos combates em que participa, nos quais só perdeu uma vez. Há quem diga que é mais WWE que boxe, mas o homem do Ohio sempre negou que tudo estivesse guionizado.
No Texas, conta-se com mais de 60.000 nas bancadas. A Netflix estima uma audiência global de 300 milhões de pessoas e, segundo diversas notícias, Paul receberá cerca de €38 milhões pela participação, enquanto Tyson encaixará cerca de €19.
Haverá oito rounds de dois minutos cada. Há oferta de bilhetes para todos os gostos, incluindo pacotes VIP que, por quase €2 milhões (sim, dois milhões de euros), dão direito a oito assentos nas duas primeiras filas, visitas aos balneários antes do combate, luvas autografadas, comida e bebida, um assistente pessoal durante o fim de semana e segurança privada.
O ruído
Em janeiro de 1997, mês em que Jake Paul nasceu, a manchete da International Boxing Digest era: “Estará Tyson acabado?”
É uma boa forma para perceber a dimensão da diferença de idades que estará no ringue. Mike, de 58 anos e fora das lutas profissionais desde 2005, é 31 voltas ao sol mais velho que o adversário que defrontará neste regresso, que sucede seis meses depois de, em maio, ter perdido um quilo e meio após uma crise de úlcera que o levou a vomitar e a defecar sangue.
Neste mundo de encenação, Tyson é, ao mesmo tempo, um estranho a esta coreografia e um natural dentro dela. Estranho porque, ao contrário de quem derrota basquetebolistas em combates de boxe, Mike é, de facto, uma lenda da modalidade, um ídolo que ganhou os seus primeiros 19 combates por knockout, o mais jovem campeão do mundo de pesos-pesados na história. Natural porque toda a vida do nova-iorquino foi feita dentro deste barulho, debaixo destes holofotes.
“Ele é um assassino feito artificialmente. Eu sou um assassino natural”. Numa das diversas promoções ao evento, é assim que Tyson se distingue de Jake Paul. Nas pesagens, o mais velho dos dois puxou para si a controvérsia: fez um gesto obsceno ao chegar ao palco, deu uma chapada no seu adversário e quase não disse nada à imprensa, tirando um “estou pronto para combater”.
Mesmo antes da obsessão moderna pelo conteúdo, o desporto sempre foi um conteúdo. Mas, à medida que as estrelas da internet se apercebem do potencial viral do desporto, parece que o conteúdo devora o boxe, o futebol, o ténis, seja o que for. Isto é desporto como conteúdo, conteúdo como desporto, ou simplesmente uma relação em que as fronteiras se esbatem, com o conteúdo a devorar o desporto como um parasita que corrói quem o transporta?
No meio disto tudo, eis Mike Tyson. Barry McGuigan, antigo pugilista irlandês, alerta, no “Guardian”: “Tu és a tua reputação. As pessoas lembrar-se-ão disto. Eu lembro-me do Mike como uma máquina de demolição. Não quero que, daqui a 20 anos, um miúdo diga: 'Ah, aquele é o tipo que teve um combate de farsa contra o youtuber”.
“Farsa” é uma acusação recorrente. Num certo sentido, isto é quase pós-desporto, competição sem uma estrutura, sem uma regulamentação clara, competição moldada aos interesses. Aos interesses do conteúdo.
Num contexto em que as audiências de televisão estão em queda em diversas áreas, a Netflix abraça o desporto ao vivo, tal como a Amazon ou a Apple o estão a fazer. Os Jogos Olímpicos, o Europeu masculino, a WNBA ou a NFL têm registado sucessivos recordes de audiência, claramente em contra-ciclo com o resto da televisão, portanto é fácil de detetar onde está o ouro.
Para Mike Tyson, este é mais um renascimento, mais uma vida numa vida cheia de vidas. O menino que cresceu em zonas de alta criminalidade, que foi preso 38 vezes antes dos 13 anos; o adolescente cujo talento para o boxe foi detetado num centro de detenção juvenil, tornando-se campeão poucos anos depois; o Tyson lendário e, simultaneamente, o Tyson que foi preso por violar Desiree Washington, o Tyson que esteve em clínicas de reabilitação de drogas. O Tyson que foi preso por agredir um fotógrafo e que, pouco depois, estava a fazer rir no filme “Ressaca”.
O Tyson do combate com o youtuber. Quem vencerá? Olhando aos números, todos — Mike, Jake, Netflix — já ganharam. Porque o conteúdo ganhou.