Cindy Ngamba fugiu dos Camarões com os pais para um Reino Unido que a acolheu mas que até hoje, 15 anos depois, não lhe concedeu a cidadania. A lutadora respondeu com trabalho e uma medalha de bronze no boxe (-75 kg), sob a bandeira da Equipa Olímpica de Refugiados. Sem hino, mas orgulhosa do seu percurso, esperando tornar-se um exemplo.
Aos Camarões não pode voltar por ser lésbica e isso pode custar-lhe a violência da prisão. De qualquer forma, o seu sonho é competir com as cores de Inglaterra, onde chegou com 11 anos e que considera «o seu lar», mesmo que este nem sempre tenha sido doce.
A lutadora de 25 anos foi porta-estandarte da formação refugiada na cerimónia de abertura, ao lado de Yahya el-Ghotany (taekwondo) e escreveu mais um capítulo da sua incrível história ao conquistar a medalha de bronze, a primeira da equipa, e a primeira de um atleta da comunidade LGBTQI+.
Depois de derrotar a francesa Davina Michel por decisão unânime, em Paris 2024, Ngamba estava feliz: «Isto significa o mundo para mim. Espero poder mudar a cor da minha medalha na próxima luta! Quero dizer aos refugiados de todo o mundo, que continuem a trabalhar muito, que se esforcem que podem concretizar todos os sonhos.»
A menina desengonçada e com sotaque esquisito é medalha de bronze nos Jogos
A jornada de Cindy Ngamba começou quando, em 2009, ela e a família fugiram de uma guerra civil nos Camarões para Inglaterra. E não foi nada fácil a adaptação da lutadora. Bolton acolheu-a mas a cultura, a escola tudo eram obstáculos à realidade que conhecia menina de 11 anos. «Tudo era diferente em casa, quando comparando com o Reino Unido, então fechei-me na minha concha», recorda. «Eu era uma menina grande para a idade e sofria bullying por causa do meu peso e da minha linguagem, da maneira que falava, do meu sotaque. Era muito quieta e reservada.»
Eu era uma menina grande para a idade e sofria bullying por causa do meu peso e da minha linguagem, da maneira que falava, do meu sotaque. Era muito quieta e reservada
No meio do caos, encontrou um escape no desporto e, mais tarde, descobriu a paixão pelo boxe. «Um dia, quando estava a sair do treino de futebol, vi muitos rapazes a sair de uma sala e só ouvia bum, bum. Entrei e vi rapazes a dar socos na cabeça uns dos outros e pensei: 'Isto é giro .'»
Decidiu rapidamente trocar as chuteiras pelas luvas de boxe, mas demorou dois anos a porem-na a combater e deixar de saltar à corda apenas. Porém, como pugilista amadora, Cindy rapidamente ganhou fama pela forma como atacava. Ngamba ganhou três campeonatos nacionais em três categorias de peso diferentes — um feito raro e difícil que chamou a atenção dos responsáveis britânicos. Só que o caminho para representar a Grã-Bretanha era quase tão complicado como para sair dos Camarões, dado que Ngamba não tinha cidadania britânica.
Algemada e quase deportada
Esta história de Ngamba ganhou um rumo dramático durante uma visita de rotina ao serviço de imigração, quando tinha 20 anos, e esteve perto de ser deportada depois de participar naquilo que pensava ser um processo rotineiro para informar as autoridades que ainda estava no país.
Cindy não desistiu. Resiliente, conquistou mais dois campeonatos ingleses e formou-se em Justiça Criminal na Universidade Bolton.
A decisão de Ngamba de se assumir como lésbica garantiu que lhe fosse concedido asilo no Reino Unido, uma vez que ser LGBTQ nos Camarões acarreta risco de violência física e perseguição. Embora tenha recebido asilo, o estatuto de cidadã de Ngamba ainda está pendente, tornando-a inelegível para competir pela Equipa Grã-Bretanha em Paris 2024.
Acredito que posso alcançar qualquer coisa que queira, porque já passei por coisas piores
Sem um passaporte britânico, Ngamba não pôde lutar pela equipa da Grã-Bretanha, mas não desistiu do sonho de estar nos Jogos e ganhou uma bolsa de estudos na equipa de refugiados do COI. «O contrato que eu precisava de assinar para entrar no programa [olímpico] dizia que tinha de ser cidadã britânica», explica Ngamba. «Eles não puderam ajudar e tiveram de me deixar ir. Foi devastador para mim, mas eu sabia que já tinha passado por coisas piores.»
Uma em cada 69 pessoas foi obrigada a fugir da sua casa ou do seu país
Ngamba venceu o torneio de qualificação olímpica em Itália, em março, e foi nomeada para a Equipa Olímpica de Refugiados. A equipe de refugiados do COI seleciona apenas 22 atletas em todas as modalidade e ela foi a primeira pugilista da equipa de refugiados classificar-se para os Jogos.
«A maneira como vejo as coisas é que todos estes contratempos, a ida para o Reino Unido, a minha infância, o meu boxe, tudo isto tornou-me mais forte mental e fisicamente», considerou a atleta de 26 anos. «Acredito que posso alcançar qualquer coisa que queira, porque já passei por coisas piores.»
O Comité Olímpico apoia atletas de elite deslocados como forma de sensibilização para o drama dos refugiados. «Permite-nos chamar a atenção e compreender a realidade global de que 120 milhões de pessoas, ou uma em cada 69 pessoas em todo o Mundo, foram forçadas a fugir das suas casas», justifica Jojo Ferris, diretora da Fundação Refúgio Olímpico.