Um Nissan Micra de 98 que custou 250 euros estacionado à porta de um cemitério. Um 'número dez' na receção de um ginásio. Um investidor japonês apaixonado pelo Minho. A festa da Taça de Portugal em Pevidém, a dias da visita do todo-o-poderoso Benfica. O futebol no seu estado mais puro, quiçá mais belo. E o zerozero por dentro de tudo.
Desafio e sonho. Palavras aparentemente distantes, mas que se equivalem em termos de proporção na prova rainha. Quanto maior o desafio, maior o sonho. Quanto maior o sonho, maior o desafio.
Sendo certo que, dentro de campo, as diferenças entre jogadores das divisões inferiores e da 1ª Liga são deixadas um pouco de lado, a verdade é que, fora das quatro linhas, os pontos em comum são praticamente nulos.
Foi com esta premissa em mente que, após o sorteio ditar que o Pevidém iria receber o Benfica na terceira eliminatória da competição - o jogo disputa-se sábado às 20h15 -, quisemos conhecer um pouco melhor a realidade do conjunto da freguesia de São Jorge de Selho, concelho de Guimarães.
Para tal, nada melhor do que sermos guiados por um dos jogadores há mais tempo no plantel às ordens do treinador João Pedro Coelho. Curiosamente, o 'farol' que guia também todo o processo ofensivo do conjunto que milita no Campeonato de Portugal: Pedrinho.
«Se for para defender mais vale nem jogar»
Não mentimos quando dizemos que as realidades de jogadores de um e de outro clube são completamente distintas.
Com o ponteiro do relógio a bater nas 15 horas, Pedrinho recebe a nossa equipa de reportagem no Optimise Human Performance, ginásio/clínica de fisioterapia onde desempenha a função de rececionista. Exatamente. À semelhança de vários colegas de equipa e de uma boa parte dos atletas que atuam no Campeonato de Portugal, o camisola 10 do Pevidém, atualmente com 33 anos, concilia o futebol com outra atividade profissional.
Careca reluzente, meias nos tornozelos e uma posição em campo que não está bem definida. Um vagabundo no setor ofensivo dos Cavaleiros de São Jorge.
O tripé e a câmara montados no interior do ginásio até poderiam intimidar Pedrinho, mas a verdade é que o médio-ofensivo encara a conversa com a mesma leveza de espírito com que joga futebol.
«A nossa expectativa é fazer um jogo bom, queremos mostrar a nossa qualidade. No ano passado, o Vilar de Perdizes defendeu o jogo todo contra o FC Porto, agora o Casa Pia contra o Sporting... Se fosse para fazer aquilo eu preferia não ter jogado. Já disse ao mister que se é para defender mais vale não jogar. No entanto, sei que a ideia dele não é essa. Queremos pressionar em cima, tal como fazemos em todos os jogos. Toda a gente sabe que o Benfica tem melhor plantel do que nós, mas se defendermos o jogo todo e perdermos 1-0 ou 2-0 ninguém vai sair valorizado. É preferível jogarmos como jogamos sempre», começa por nos dizer o criativo.
Referindo que se o jogo fosse disputado no Parque de Jogos Albano Coelho Lima as hipóteses do Pevidém seguir em frente passariam «de cinco para dez por cento», Pedrinho considera que o facto de a partida ser jogada em Moreira de Cónegos é «um mal menor»: «O campo também é pequeno e dá para sentir a atmosfera.»
Ainda que o encontro frente ao Benfica seja um momento extremamente relevante na história do Pevidém, a verdade é que o clube chega a esta eliminatória da Taça após ter eliminado o Marítimo, da II Liga. A passagem dos Cavaleiros de São Jorge foi consumada com um penálti cobrado por Pedrinho à passagem do minuto 120, num cenário que não fez tremer o camisola 10.
«Foi a coisa mais fácil do mundo. Não me importava se fosse eu a falhar, se falhasse tínhamos penáltis a seguir e não era uma sentença. Aquele penálti foi o mais fácil do mundo, fui em piloto automático porque ia ser o herói se marcasse. Foi escolher o lado e meter a bola», vinca.
O sorteio, esse, fez disparar a euforia na vila de Pevidém, ainda que, dentro do plantel, a maioria dos jogadores preferisse «o Vitória SC»: «Os meus amigos ficaram mais eufóricos com o sorteio do que eu. Gostei do sorteio, mas tento lidar com as coisas de uma forma leviana. As pessoas da vila estão eufóricas porque há muitos benfiquistas e nunca viram um jogo desta magnitude no clube da terra deles. No café já perguntam como vai ser e nós respondemos dizendo que vai ser um bom jogo e que vamos ganhar. Queremos manter os ânimos lá em cima.»
E agora, irá aproveitar Pedrinho para pedir a camisola a algum jogador do Benfica após o encontro? A resposta é inesperada, bem ao jeito do que Pedrinho produz dentro de campo.
«A única camisola que queria vinda do Benfica era a do Messi. Se o Di María ou o Otamendi conseguissem... Podem lançar o repto que eu e o Tiago Vieira só queremos uma videochamada com o Messi, pode ser antes ou depois do jogo. Se isso acontecer, está ganho o ano e está ganha a vida», atira, num tom bem humorado.
Futebol como segundo trabalho
Se, do lado do Benfica, os jogadores dedicam-se única e exclusivamente a jogar futebol, como é então a rotina de um atleta do Pevidém, clube que se encontra três divisões abaixo das águias?
«É simples: entro às 9h e tenho ali o meu espaço. Trato das marcações dos clientes e do agendamento dos treinos. Tento organizar o espaço, ver coisas que possam faltar e que possam ser melhoradas, recebo os clientes e explico a dinâmica do espaço a potenciais novos clientes que venham cá», começa por descrever Pedrinho, que faz questão de deixar um agradecimento ao patrão:
«Ele conhece-me há muitos anos e permite-me conciliar o trabalho com o futebol. Permite-me sair às 16h/16h30 para os treinos [começam às 17h] e faltar certas manhãs quando tenho jogos-treino. Esta flexibilidade permite-me ter dois trabalhos. Quando os treinos são em Santiago de Mascotelos [clube com o qual o Pevidém tem uma parceria], consigo ir a pé. Como falho duas horas no trabalho, depois do treino venho compensá-las.»
De forma natural, Pedrinho não é o único jogador do plantel com outra atividade profissional, tal como nos descreveu o criativo. «O Carlos Rocha tem um restaurante, o Tiago Ronaldo é personal trainer, o Tiago Vieira trabalha numa gráfica, o André Preto está desempregado, o Marna também tem outro emprego e o Sardinha trabalha na empresa do pai, mas não faz nada [risos].»
Perante esta descrição, surge-nos uma dúvida. Tendo em conta que o Optimise Human Performance está em atividade há cerca de um ano, que outros empregos teve Pedrinho?
«Eu sempre fui um preguiçoso de primeira ordem, então fui-me deixando levar pela vida. Antes tive dois trabalhos: no primeiro estava num quiosque em frente a uma escola em Pevidém. O quiosque só vendia gomas, sumos e batatas fritas, mas como tomei conta do quiosque durante um ano posso dizer que o meu primeiro trabalho foi como empresário [risos]. Depois disso trabalhei na reposição do Continente. Trabalhava das 5h às 9h e foi por isso que comecei a ficar careca. Não dormia e não descansava, às vezes ia direto do trabalho para o jogo, uma confusão... Quando vim para o Pevidém deixei isso e há cerca de um ano estou no OHP», explica, com um sorriso na cara.
O famoso Nissan Micra
«Pedrinho, agora gostávamos de te acompanhar até ao treino, até para falarmos com outras pessoas do clube»
«Sem problema, podemos ir a pé ou de carro. Comprei um Nissan Micra de 98 a um amigo meu e chegou hoje!»
«Se calhar vamos a pé porque está sol, mas queremos ir ver esse carro»
É na sequência desta conversa que nos despedimos do OHP e seguimos Pedrinho até à sua mais recente aquisição. O caminho é curto e o ato de nos aproximarmos do carro é acompanhado por uma frase de Pedrinho: «Que máquina! Custou-me 250 euros, até posso deixar as portas abertas que ninguém me rouba. Filmem bem isto [risos].»
Na chegada ao campo do Santiago de Mascotelos, rapidamente percebemos que todos estão a par que Pedrinho estava prestes a comprar um carro 'novo'...
«Então e o carro?», ouve-se do diretor desportivo João Moreira.
«Já chegou, mas hoje vim a pé. Deixei-o em frente ao cemitério.»
«Quer dizer, compras um carro novo e ele já está no cemitério? Não é muito bom sinal...».
O diálogo acontece enquanto Pedrinho mostra fotografias do veículo aos seus colegas, num ato seguido de uma boa dose de risos.
Yuya Ishizuka, um dos japoneses do plantel, apressa-se a cobiçar o carro e dá a dica que está preparado para o comprar a Pedrinho. No entanto, a resposta é imediata: «Tu, o Araki e o Atsushi só estão habituados a conduzir carros automáticos, têm de se juntar os três e comprar um [risos].»
Uma coisa é certa, nunca será por falta de espírito de equipa que o Pevidém irá perder contra o Benfica.
Um amor que não se explica
De volta a um tom um pouco mais sério, e olhando até para o trajeto de Pedrinho dentro do clube - terminou a formação no Pevidém, jogou no clube nas quatro primeiras temporadas de sénior e regressou a 'casa' há seis anos -, questionamos o médio-ofensivo: para quem não conhece, como se pode descrever o Pevidém?
«Toda a gente diz que o seu clube é diferente, acaba por ser um pouco clichê. No entanto, o Pevidém acaba por ser mesmo um clube diferente. O estádio é um daqueles que já não se vê. As condições são um pouco deploráveis, os balneários são bastante antigos... Apesar de as condições a nível estrutural não serem nada por aí além, os jogadores que para cá vêm encaixam-se perfeitamente. Parece que são escolhidos a dedo - e há que dar mérito a quem contrata neste aspeto - e ficam a adorar o clube. Penso que esta paixão que o Pevidém consegue criar nas pessoas que por lá passam é o que melhor define o clube», revela, com um tom carinhoso.
Com investidores japoneses a terem entrado na SAD no ano passado, Pedrinho espera agora que o futuro seja risonho: «Olhando para questões relacionadas com melhorias do estádio e das condições de treino, o clube ainda está muito dependente de investimentos públicos. São burocracias que me passam ao lado e penso que isso não está muito ligado aos investidores. Os investidores podem e devem focar-se nisso, mas a prioridade é estabilizar o clube e tentar subir à Liga 3, que é o nosso objetivo este ano. Depois temos de dar o próximo passo. Daqui a 20 anos, se não houver um bom estádio e boas condições para a formação, o clube não vai ser nada.»
A despedida acontece já depois de conversarmos com Pedrinho sobre a relação umbilical que tem com o Pevidém.
«Às vezes tento explicar e as pessoas não percebem. O meu pai nem queria que eu viesse para o Pevidém porque a formação do clube não era conhecida. Eu tinha os meus amigos de escola, vim para o clube e o amor foi despertando desde aí. Estou a representar os meus, a vila onde nasci. Quando cheguei à idade de sénior fui tendo propostas, mas dizia sempre "O meu sonho é jogar nos seniores do Pevidém e ser capitão". Meio a brincar meio a sério, o meu sonho passou a ser ter o maior número de jogos possível pelo clube da minha terra. Eu poderia sair do Pevidém, mas onde é que seria tão feliz como sou aqui? Se calhar em lado nenhum. Olhar para a bancada e ver os meus amigos... Acabar a carreira aqui é ponto assente», remata.
Irá o fim de carreira do camisola 10 acontecer depois de este conseguir um resultado positivo frente a um dos ditos 'três grandes' do futebol português? O jogo de sábado irá dizê-lo.