Algo paradigmático aconteceu quando Andrés Iniesta ainda falava num antigo cinema de Barcelona, dando conta ao mundo da sua decisão de deixar de jogar futebol: o Real Madrid, rival encarniçado do seu Barcelona, lançava um comunicado no seu site com uma mensagem de “reconhecimento, admiração e carinho” por uma das “grandes lendas do futebol espanhol e do futebol mundial”, autor daquele “icónico golo da final do Mundial da África do Sul 2010”, o mesmo que fez Juan Antonio Camacho, mito dos merengues, gritar Iniesta de mi vida! enquanto comentava o jogo para um canal espanhol.

Andrés Iniesta é mesmo da nossa vida, de todos os que gostam de futebol, sejam lá de que clube forem. O Cornellà-El Prat, estádio do rival regional Espanyol, aplaudiu-o de pé em tempos, o Real Madrid comemora-o, porque mesmo em tempos de guerra, Iniesta falou a mais bonita língua do futebol com os pés, aqueles pés que magneticamente agarravam a bola para nunca a mais deixar. Por alguma razão Lionel Messi escreveu que la pelota vai extrañar Andrés, um falso amigo linguístico que não, não significa que a bola vá estranhar Andrés, mas sim sentir muito a sua falta, embora vá parecer, de facto, estranho que a bola siga a sua vida sem Iniesta.

Mas ele tem 40 anos e os últimos sete já foram feitos em modo pré-reforma pelo Japão e Emirados Árabes Unidos, por saber que no Barcelona só se joga numa intensidade que Andrés Iniesta já não sentia no seu peito, mais do que nos seus pés. Ainda assim, o dia do adeus não foi anónimo, não foi um rodapé numa folha de jornal, uma mensagem no ticker de um canal de notícias. Mesmo que há muito que Iniesta tivesse deixado o radar do futebol hiper-competitivo, houve muita emoção esta terça-feira, num anfiteatro cheio de família, amigos, antigos colegas e dirigentes.

Alejandro Garcia

“Permitam-me que me emocione hoje”, começou por dizer o rapaz nascido em Fuentealbilla, Albacete, para, ato continuo, se emocionar e desatar a chorar. Está permitido, Don Andrés Iniesta que, de permeio, emocionou toda a gente com uma viagem pelos momentos mais marcantes da carreira, dando voz aos outros e menos a si próprio, ele que era tão vazio de ego como cheio de talento.

Depois das lágrimas, “não de tristeza mas de orgulho”, começou, precisamente, por Fuentealbilla, onde era “un niño que sonhava ser futebolista” e que o conseguiu, “com trabalho, sacrifício e esforço”. Falou o seu primeiro treinador no Albacete, depois o pai, que recordou aquela viagem de Castilla-La Mancha até Barcelona, quando ia deixar o filho de 12 anos em La Masia e em que ninguém conseguiu comer, nem ele nem o pai, nem a mãe ou o avô que o acompanharam, tal era o aperto no coração. “É muito bonito que quase 30 anos depois estejamos aqui todos neste momento tão importante e especial”, sublinhou o agora ex-jogador.

Luis Enrique, que era um dos veteranos do plantel do Barcelona quando Iniesta começou a treinar na equipa principal, deu-lhe a primeira assistência para golo, recordou. Depois foi seu treinador. O agora técnico do PSG, que tem aquela ginga malandra com as palavras, definiu de maneira deliciosa que jogador era Andrés Iniesta: “Sabes o que ele me reflete? Aquilo que nós sentíamos quando éramos pequenos e as nossas mães nos chamavam já de noite, quando já nem víamos a bola: ‘sobe! sobe’”. É possível que não haja melhor elogio do que esta imagem, a mais pura do futebol.

Falaram Van Gaal, o primeiro homem a chamá-lo aos treinos da equipa principal, Vicente del Bosque também, o selecionador da Espanha de 2010, ano em que Iniesta se tornou imortal, com aquele golo no prolongamento que deu o até agora único título mundial aos espanhóis.

Sobre ele, Iniesta mantém-se humilde. “Esse golo marcámos todos: jogadores, adeptos. Tive a oportunidade de fazê-lo, mas a magia de todos tornou-o possível”. E nesses todos está, claro, Dani Jarque, seu amigo fulminantemente desaparecido meses antes da final de Joanesburgo e a quem dedicou o golo. O pai de Jarque estava no auditório a assistir ao adeus de Iniesta.

Alejandro Garcia

Pep Guardiola falou do dia em que Iniesta, um tipo tímido, se lhe entrou pelo gabinete adentro num momento complicado no seu arranque como treinador do Barcelona e lhe disse que tudo ia “correr bem”. Que a equipa gostava dos treinos, que tudo iria ao lugar. O Barcelona ganharia seis títulos nessa época 2008/09. Seguiram-se testemunhos vindos de Kobe, para onde Iniesta foi jogar, para o então modesto Vissel, numa cidade que o ajudou a ter “uma experiência maravilhosa” do outro lado do mundo. Em todo o lado, pequenos piscares de olhos a um futuro como treinador, futuro que Andrés Iniesta admitiria querer agarrar já mais para o final da cerimónia.

Os últimos anos, assumiu, passou-os já a formar-se e a olhar para o que vem a seguir e que poderá passar pelos bancos. “Preciso de aprender, cometer erros, formar-me”, sublinhou, sem pressas, com a calma análoga à que geria o jogo no relvado. Está neste momento a tirar o curso de treinador, diz, admitindo que não consegue estar muito longe do futebol. “Vou tentar voltar a fazer um grande trabalho, não atrás da bola, mas partir de outro lugar e esse será o seguinte passo”.

E por isso vamos continuar a vê-lo por aí, diz, antes de chamar a sua família, mulher, pais, filhos e irmã, para uma foto. Ainda bem, Don Andrés, ainda bem.