«Vou direta ao assunto: vou retirar-me. (...) O futebol foi parte de mim por 30 anos e uma das primeiras coisas que alguma vez amei. Dei tudo a este desporto e o que ele me deu de volta foi mais do que alguma vez sonhei. (...) A Charlie chegou ao meu lado no outro dia e disse-me que quer ser jogadora profissional quando crescer. Fez-me imensamente orgulhosa, não porque desejo que ela o seja, mas porque agora existe um caminho que até uma criança de quatro anos consegue ver.»

O final foi abrupto. Do nada, sem que algo o fizesse prever, um vídeo publicado nas redes sociais: «vou direta ao assunto: vou retirar-me.» Assim, num estalar de dedos, a vírgula seguida da data para o ponto final: três dias depois, na receção ao North Carolina Courage, Alex Morgan calçaria as chuteiras uma última vez. No mesmo vídeo, o contraste entre o anúncio do fim de uma vida, a de jogadora profissional, e o início de outra, a do segundo filho que carrega no ventre e que vai tornar Charlie, a filha de quatro anos, irmã mais velha.

Os méritos desportivos são o que são, estão gravados nos livros e nunca mais serão apagados. O que não está descrito em estatísticas ou gravado em medalhas, mas que a memória não deixa esquecer é um legado ainda maior do que aquele que construiu no relvado. Falamos da primeira cara global do futebol jogado por mulheres, a cara que se tornou conhecida de muitos antes da própria modalidade, a cara que trouxe mais visibilidade, mais investimento, mais patrocínios, mais marcas... mais futebol.

Num mundo onde tanto associamos o '13' ao azar, Alex Morgan deu-nos razões mais do que suficientes para o considerar um número afortunado, sobretudo quando aparece nas costas de uma camisola, por debaixo de um «Morgan» em letras garrafais. Goleadora exímia, jogadora de elite, sem dúvida, mas o verdadeiro impacto de Morgan no jogo é incalculável.

Na hora do adeus, a certeza de que o maior dos golos foi marcado fora de campo surgiu pelas palavras da própria: «A Charlie chegou ao meu lado no outro dia e disse-me que quer ser jogadora profissional quando crescer. Fez-me imensamente orgulhosa, não porque desejo que ela o seja, mas porque agora existe um caminho que até uma criança de quatro anos consegue ver.»

Este é o maior dos golos da agora ex-avançada de 35 anos, maior do que qualquer outro dos mais de 190 que festejou em campo. Porque antes de surgirem figuras globais que hoje temos, como os casos de Aitana Bonmatí, Alexia Putellas ou até a nossa Kika Nazareth, houve uma altura em que toda a gente queria ser Alex Morgan. Na hora de se despedir, a norte-americana deixa a modalidade bem entregue, com um caminho trilhado e que agora tem seguimento com outras que um dia sonharam ser como ela.

Uma experiência «surreal»: «A maior conquista foi abrir o caminho e elevar o futebol feminino»

Muitas foram as jogadoras que tiveram a oportunidade de partilhar balneário com Alex Morgan ao longo dos anos. Uma dessas privilegiadas, se assim quisermos, dá cartas em Portugal e na Liga BPI nos dias que correm. Andrea Norheim, defesa central do Sporting, reforçou o Lyon no verão de 2016 e, seis meses depois, o fenómeno Morgan aterrou em França.

«Eu cheguei no verão e ela veio no inverno, quando eu já estava lá há seis meses. Só o facto de estar lá e jogar com tantas estrelas foi incrível, uma loucura. Eu via essas jogadoras na televisão e nas redes sociais, sabia quem elas eram e, de repente, estava a treinar com elas todos os dias. Foi surreal. Quando ela chegou, em janeiro, foi ainda mais irreal, porque ela era a jogadora de futebol», contou Norheim, em declarações ao zerozero.

qEspecialmente naquela época não havia muitas jogadoras famosas para as pessoas fora do mundo do futebol feminino. Ela era a única que toda a gente no Mundo sabia quem era
Andrea Norheim

«Especialmente naquela época não havia muitas jogadoras famosas para as pessoas fora do mundo do futebol feminino. Ela era a única que toda a gente no Mundo sabia quem era. Tê-la, de repente, no nosso balneário foi uma loucura. De repente, essa pessoa famosa estava ali», acrescentou.

A «pessoa famosa» era para Andrea Norheim o mesmo que para tantas outras jovens com sonhos na modalidade: uma inspiração. Sobretudo porque, naquela altura, também a norueguesa jogava em terrenos mais adiantados: «Sempre joguei como avançada ou média ofensiva. Quando cheguei ao Lyon, jogava nessa posição. Tê-la lá enquanto uma das melhores avançadas do Mundo foi muito inspirador, poder ver como ela era boa a finalizar. Sentia que a movimentação dela sem a bola era muito boa, estava sempre bem posicionada. Treinar com ela foi inspirador.»

Também fora do campo Morgan ditou as regras. «Eu admirava-a realmente, também porque... Vejamos, eu sou uma pessoa que gosta de se vestir bem, de estar bonita. Quando ela chegou, surge essa pessoa com cabelo comprido, sempre com uma bandolete rosa, que gosta de se vestir bem. Para mim, era um modelo a seguir no campo, mas também fora dele.», disse.

@FPF

O legado que a internacional norte-americana deixa é incalculável. «Acho que teve um impacto extremo. Não estaríamos [futebol feminino] onde estamos hoje se não fosse por ela», atirou Norheim. «Abriu o caminho para todas nós, mostrando que também podemos ser excelentes jogadoras de futebol. Era uma ótima jogadora, claro, mas a maior conquista dela foi abrir o caminho e elevar o futebol feminino, criando espaço para termos o futebol que temos hoje», prosseguiu.

Por detrás da super estrela está, no entanto, uma pessoa completamente humana como as outras. «Consegue sentir-se [a aura], torna-se muito percetível que ela está ali e ela era essa personalidade gigante. Mas senti ao mesmo tempo, no dia a dia, que se podia ver que era uma pessoa como as outras. Eu percebia o que ela estava a passar, porque eu passava pelo mesmo: éramos ambas estrangeiras, novas ali e chegar a França, com a língua e a cultura, é difícil para um estrangeiro. Eu sentia que ela também era uma pessoa normal, que também sentia dificuldade», contou-nos.

qEra uma ótima jogadora, claro, mas a maior conquista dela foi abrir o caminho e elevar o futebol feminino, criando espaço para termos o futebol que temos hoje
Andrea Norheim

Dos tempos de Lyon, Norheim leva consigo uma aprendizagem para a vida: «Ela era muito destemida. Era nova na equipa, mas mesmo assim tentou desde o começo conquistar espaço no grupo, finalizava jogadas mesmo quando o mais prudente seria passar a bola. Nunca tinha medo de tentar ou de ser ela mesma. Recordando isso, é algo que aprendi com ela. É uma maneira bonita de encarar a vida: nunca deves ter medo, deves ser destemida e ir atrás do que queres, sem medo de seres quem és

«Ajudou a que as pessoas se interessassem mais pela jogadora de futebol»

Dolores Silva, capitã do SC Braga e da seleção nacional, defrontou Morgan em múltiplas ocasiões. Em declarações ao zerozero, a média só teve elogios a fazer à jogadora, mas também à mulher, garantindo que todo o carisma transparece no relvado.

«É uma figura incontornável do futebol feminino. Para todas nós, particularmente a nossa geração, que cresceu a seguir muito das jogadoras dos Estados Unidos, a Morgan foi sempre uma figura muito presente. Ter jogado contra ela foi um privilégio muito grande e acho que toda essa personalidade que ela tem, tudo o que ela representa, podia sentir-se dentro de campo», disse-nos a internacional lusa.

@SC Braga

O último duelo travado entre ambas foi no último Campeonato do Mundo, no qual Portugal esteve muito perto de afastar as campeãs mundiais. «Sentia-se muito também nas bancadas, era uma das pessoas mais aplaudidas, mais acarinhadas pelos americanos. Também sentimos isso. É um exemplo extraordinário de atleta», recordou.

qÉ uma figura que representa muito a mulher, que tem muito carisma e isso acaba por lhe deixar um legado muito bonito a uma escala global
Dolores Silva

O legado que Morgan deixa na modalidade é indubitável, como Dolores também deixou claro: «Soube sempre usar muito bem toda a imagem que tinha, tudo o que era enquanto atleta e sabendo que podia ter essa força para continuar a empurrar a modalidade para o crescimento que teve, sobretudo nos Estados Unidos. Claro que também ajuda elas terem conquistado títulos e terem sido sempre pioneiras em muitas coisas, também por estarem num país que lhes permite ter esse protagonismo.»

«A forma como veem o futebol feminino lá é, se calhar, muito diferente da Europa, onde só estamos a vivenciar isso agora. Isso é fruto de jogadoras como ela. Ela podia até nem ser conhecida como atleta aqui [na Europa], mas toda a gente sabia quem era a Alex Morgan. É uma figura que representa muito a mulher, que tem muito carisma e isso acaba por lhe deixar um legado muito bonito a uma escala global. Será sempre uma lenda da modalidade e que ajudou a impulsionar o nosso futebol e a que as pessoas se interessassem mais pela jogadora de futebol», concluiu.