Lassana Diarra viveu uma carreira satisfatória, na qual vestiu as cores da seleção francesa, Chelsea, Arsenal, PSG e até fez mais de 100 jogos pelo Real Madrid, mas pode muito bem ficar na história por motivos não relacionados com o seu talento futebolístico.
Foi no final da semana passada que os juízes luxemburgueses, ao serviço do Tribunal Europeu de Justiça (TEJ), deram razão ao ex-jogador num caso que se arrasta desde 2015, estabelecendo um precedente legal que vê certas partes do regulamento da FIFA como incompatíveis com a lei da União Europeia e que, além disso, pode abalar por completo com o status quo das relações contratuais entre clubes e jogadores.
Pouco se sabe sobre o verdadeiro impacto desta decisão, mas a bola de especulação sobre as potenciais mudanças que podem surgir no mercado de transferências - avaliado em mais de 10 mil milhões por temporada - e no futebol como um todo já está a rolar pela encosta abaixo a grandes velocidades. Confuso? Tentaremos explicar...
Um ano em Moscovo, dez nos tribunais: o Caso Diarra
Para entender o potencial impacto da decisão, é preciso conhecer o caso.
A história começa quando o outrora poderoso FK Anzhi, que tinha seduzido o antigo médio a trocar o Santiago Bernabéu pelo Daguestão, viu a aparentemente infinita fonte de dinheiro secar. Assim saíram as várias estrelas, incluindo Diarra, que optou por permanecer no futebol russo ao serviço do Lokomotiv. As coisas não correram muito bem.
«Rescisão sem justa causa» foram as palavras-chave dos vários processos legais relacionados com Diarra, que ainda recorreu ao Tribunal Arbitral do Desporto (TAD) para ver a decisão confirmada, ainda que com a multa financeira ligeiramente reduzida.
Em 2015, ainda nesse período em que esteve impedido de jogar, Lass Diarra recebeu uma abordagem do Charleroi, mas o clube belga acabou por se afastar ao perceber que, contratando o jogador, colocava-se em risco de ficar responsável pelo dinheiro devido ao Lokomotiv ou até proibido de inscrever jogadores.
Foi nesse momento que Diarra decidiu processar a Federação da Bélgica e a própria FIFA, alegando uma perda de seis milhões de euros em potenciais rendimentos. Essa batalha contra os gigantes perdurou durante o resto da carreira (ainda passou pelo Marseille, Al Jazira e Paris SG!) e durante os primeiros cinco anos da reforma, até à recente decisão do TEJ lhe atribuir a vitória sobre a organização que tutela o futebol mundial.
Primeiro as leis da UE, só depois as da FIFA
Até aqui parece que estamos perante uma vitória de um David contra um Golias numa instância específica em que o pequeno - um jogador de futebol multimilionário, leia-se - foi injustiçado pelo sistema, mas os moldes dessa «vitória total», como descrevem os advogados, são elucidativos para uma série infinita de casos passados e futuros, no que pode levar a FIFA a arrepender-se seriamente de não ter dado razão ao jogador há quase dez anos, no primeiro apelo.
Em Portugal, também Joaquim Evangelista, presidente do Sindicato dos Jogadores, opina a favor desta deliberação através do próprio site do sindicato: «Hoje existe uma paz podre e um diálogo de cosmética, sem qualquer objetividade na procura de soluções que protejam os jogadores e o futebol. Lassana Diarra, apoiado pelos colegas da UNFP e da FIFPRO, ficará na história por ter levado a sua luta pessoal adiante, na defesa de um bem maior.»
De facto, os atores do mundo futebolístico parecem unânimes na consideração de que esta novidade pode ter um tremendo impacto no futuro da modalidade, uma vez que foi considerado que as leis da FIFA não condizem com direitos fundamentais dos trabalhadores na União Europeia, como a livre circulação ou a lei de concorrência. Um caso que pode muito bem ser a primeira faísca numa explosão de larga escala, à semelhança do que aconteceu com Bosman...
Bosman 2.0? Há quem diga que sim...
Se o nome não lhe é familiar, tentaremos ajudar. Jean-Marc Bosman, sem ser um messias dentro das quatro linhas, foi o principal responsável pela completa revolução que o mercado de transferências do futebol sofreu durante os anos 90.
[Leia aqui a história do «Acórdão Bosman»]
A história é célebre e foi o ponto de partida para o futebol que hoje conhecemos, com contratos extensos (e milionários) numa divisão mais justa do poder entre clubes e jogadores. Para isso contribuiu Bosman, pois claro, mas também Jean-Louis Dupont, advogado que representou o antigo jogador belga e agora, quase 30 anos depois, também levou Diarra à vitória no Tribunal Europeu de Justiça.
«Agradecemos a Lassana Diarra por seguir este tão exigente desafio. Estamos orgulhosos por termos apoiado alguém que - como Jean-Marc Bosman antes dele - garantiu que milhares de jogadores pelo mundo fora lucrarão com um novo sistema», pode ler-se no fim do tal comunicado da FIFPro. Novo sistema, dizem? Como será isso afinal?
O efeito prático no futebol
Há muito para desembrulhar na história, pelo menos nesta fase de poucas certezas. Será que poderemos ver Gyökeres a rasgar o seu contrato com o Sporting devido qualquer incumprimento leonino? Ou que Palmer, ainda com nove anos de contrato com o Chelsea, pode deixar o clube a custo zero por pura ambição pessoal? Dificilmente... Uma das poucas certezas neste momento é que existe uma série de agentes a esfregar as mãos, entusiasmados com o vasto leque de novas possibilidades.
Para já, a FIFA tem tentado minimizar o impacto desta decisão, argumentando, através de um porta-voz, que esta «só põe em causa dois parágrafos de dois artigos» do seu regulamento, mas não são poucos os que acreditam que podemos estar perante uma séria remodelação do mercado de trabalho no futebol.
Os atletas não passaram a poder abandonar contratos a seu bel-prazer, tal como a maioria dos trabalhadores que têm um prazo determinado na duração do contrato não o pode fazer, mas certo é que dificilmente voltaremos a ver um jogador condenado a pagar uma compensação milionária por uma rescisão sem justa causa.
Se faltam respostas é porque Diarra não surge como um revolucionário, mas sim um instrumento de mudança. Um elemento perturbador numa história que ainda está longe do fim.
Estaremos perante o fim das transferências como as conhecemos, com potencial risco para o equilíbrio do futebol e a sobrevivência de milhares de clubes? Ou bastará à FIFA reescrever dois parágrafos do seu extenso documento de regras? Veremos...