Simone Biles, na sua infinita sabedoria, explicou-nos a todos, há três anos, que não há super-heróis. Nem os atletas que parecem voar mais alto, nem os artistas que arranjam tempo e espaço para mais uma pirueta no ar, como ela. Simone Biles é humana, mesmo não sendo uma humana como todos nós, e soube parar quando percebeu, num desses voos, que a humanidade tinha descido sobre ela.

Ainda assim, nunca nos é natural ver Simone a falhar. Parece um erro no guião, um glitch na narrativa, uma impossibilidade. Faz-nos ter reações físicas esquisitas. Esta segunda-feira, a norte-americana tinha a oportunidade de juntar mais duas medalhas aos três ouros já arrebatados nestes seus Jogos da redenção. E se a trave nunca foi o seu habitat natural - se é que isto se pode dizer de alguém que tem dois bronzes olímpicos e quatro títulos mundiais neste aparelho -, no solo, tal a dificuldade dos exercícios que coloca em prática, o ouro parecia quase um assunto burocrático, um carimbo em falta.

Mas num final de manhã e início de tarde na Arena de Bercy em que pareceu pairar uma nuvem de nervos entre todos os finalistas, tanto no masculino como feminino, com quedas e erros em sequência, nem a maior ginasta de todos os tempos foi menos humana que os outros. Na trave, depois de um par de tremeliques, caiu mesmo. E talvez ainda abismada com o seu próprio erro, inesperado, raro, ter-se-á esquecido de terminar a sua apresentação com a protocolar saudação ao júri, acumulando, por isso, 0.3 pontos de penalização, algo quase tão incomum quanto uma falha de execução da diminuta gigante texana. No final, Biles nem ao pódio foi, terminando no 5.º lugar. O sorriso, que parece permanentemente desenhado na cara da ginasta, desvaneceu-se.

Seguiu-se Rebeca Andrade, com a oportunidade de uma vida de bater Biles em igualdade de circunstâncias, depois de ter sido ouro no salto em Tóquio, uma das provas que a norte-americana dispensou. Só que a brasileira, não caindo, também foi juntando pequenos desequilíbrios e hesitações. A nota, contestada, não lhe chegou também para o pódio. A final da trave, conquistada pela esfíngica italiana Alice D’Amato, a ginasta que menos errou, transformou-se num anticlimático golpe de teatro.

Mas ainda faltava mais uma final. O solo, que se tornou numa espécie dos 100 metros da ginástica desde que o mundo tomou conhecimento da existência de Simone Biles e Rebeca Andrade, duas velocistas da excelência, da graciosidade, do fisicamente impossível. O último duelo entre ambas em Paris, entre duas atletas empoderadas e que se empoderam uma à outra, era o derradeiro espectáculo, quem sabe a última oportunidade de um ouro olímpico para ambas - até porque não sabemos o que farão no futuro, porque contam já veteranas no diagrama da idade das ginastas, apesar de Rebeca ter 25 anos e Simone 27.

E como se todo o peso que lhe parecia enfiado nas costas durante o exercício de trave se tivesse desvanecido, Rebeca Andrade, a extraordinária brasileira que ousou levar o funk e o “Baile de Favela” para o cenário solene de uns Jogos Olímpicos, tinha guardada para esta última apresentação o seu exercício mais completo, elegante e belo. Os júri deu-lhe 14.166 e restava-lhe esperar por Biles.

A norte-americana, como sempre, encarou o praticável como um ringue de boxe, sovando-o com toda aquela potência que às vezes parece nem conseguir controlar, impulsionando-se como se estivesse na disposição de romper o teto da Bercy Arena. A nível de dificuldade, os exercícios de Biles não têm pai ou mãe ou qualquer outro familiar, e isso dá-lhe logo vantagem ainda mal deu o primeiro mortal. Só que essa quase descontrolada força da mulher que procurava o seu 8.º título olímpico saiu mesmo do colete de forças: em duas ocasiões, duas aterragens, Simone foi para lá dos limites do cenário.

Noutras ocasiões, nem esses erros impediriam a vitória de Biles, mas Rebeca, como a própria norte-americana sublinhou nestes Jogos Olímpicos, nunca deixou Simone navegar longe da costa, livremente, sem necessidade de olhar para trás. Os 0.6 pontos de penalização para Simone Biles foram, assim, a morte figurada do artista, da artista neste caso. Entre ambas, a diferença foi mínima (14.166 para Rebeca, 14.133 para Biles), mas desta vez deu Rebeca. É triste que a glória de alguém tenha de ser feita às custas de outro alguém igualmente icónico, talentoso e espectacular, mas a brasileira, pelo que deu ao público nesta semana de show permanente em Paris, merecia isto.

A menina que é uma de oito irmãos e que cedo deixou a sua casa num bairro pobre nos arredores de São Paulo para treinar em Curitiba, no sul do Brasil, e depois no Rio de Janeiro, a mulher brasileira, negra, que rebentou três vezes o joelho antes dos Jogos de Tóquio, tornou-se numa das atletas mais carismáticas destes Jogos Olímpicos e é história do Brasil, porque com este ouro é agora a atleta olímpica, homem ou mulher, com mais medalhas pelo seu país. Só em Paris foram quatro caricas, inclusive um histórico bronze na prova por equipas.

No pódio, antes de subir ao escalão mais alto, Rebeca recebeu a derradeira homenagem das rivais que tanto a respeitam: Jordan Chiles, medalha de bronze, e Simone Biles, prata, uniram-se numa vénia, numa das imagens que vai marcar estes Jogos Olímpicos. Rebeca Andrade, história da ginástica, história do Brasil, mereceu muito este final.