Nos países da OCDE – economias de mercado de base capitalista geridas por regimes de democracia liberal com preocupações sociais – os bancos centrais são independentes do poder político e estabeleceram como missão principal defender a qualidade da respetiva moeda (currency). (Nas democracias musculadas, nas ditaduras e no país ideal para Trump, os bancos centrais fazem o que o poder político manda).

Para defender aquele princípio, os bancos centrais vão criando moeda apenas à medida que a economia cresce, para que não faltem meios de pagamento aos agentes económicos. Se criarem dinheiro a mais arriscam provocar um sobreaquecimento da procura e como a capacidade de produção ou de oferta não é elástica criam automaticamente subida de preços ou inflação (demasiado dinheiro para comprar os mesmos bens); Se os bancos centrais criarem menos dinheiro do que o crescimento da economia, a moeda escasseia e como não há quem compre os preços baixam – fenómeno conhecido por deflação.

Esta é a regra dos bancos centrais para períodos normais de crescimento económico.

Em 2007 deflagrou uma crise no sistema financeiro internacional por causa da perda de confiança nalguns produtos (Sub-Prime nos EUA, MBA vendidos nos EUA e na Europa a cair a pique); uma crise que contagiou os mercados de capitais, a economia real, o sistema bancário e, por fim, as dividas soberanas; nos dois lados do Atlântico os bancos centrais foram pressionados a dar mais importância à segunda função que estabeleceram para si próprios: combater recessões e impedir depressões.

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Conseguiram: a grande recessão daqueles anos não se transformou numa depressão.

Como? Com a emissão massiva de dinheiro novo pelos bancos centrais criado a partir do nada: isto é, sem corresponder à criação de riqueza que tinha deixado de existir por causa da crise – o objetivo era inundar a economia com mais dinheiro para os agentes económicos o usarem a investir e a criar negócios para reanimar a economia.

Como sabemos, esta estratégia dos bancos centrais manteve-se por mais de 10 anos e acelerou com a pandemia

Entretanto grande parte desse dinheiro não chegou à economia real, ficou nos mercados de capitais em especulação que alastrou a moedas virtuais e ao imobiliário de muitas cidades (os portugueses são vítimas disso em preços e rendas de casa muito elevados).

Como o dinheiro não chegava a toda a gente, o PIB não disparava, a inflação mantinha-se controlada e as taxas de juro mantiveram-se baixas ou negativas, por bastantes anos… O BCE remunerava os depósitos dos bancos a taxas negativas, isto é, obrigava-os a pagar para terem o dinheiro nos seus cofres, para os obrigar a investir mais na economia através do crédito…

Banco Central Europeu
Banco Central Europeu ANDRE PAIN

Até que, com grandes pacotes de ajuda direta, as populações nos EUA, com a continua emissão de dinheiro na Europa e no Japão e com o fim da pandemia, o dinheiro começou realmente a chegar à economia, a atividade económica retomou e a procura começou a ultrapassar largamente a oferta (tudo isto agravado com uma guerra que contribuiu para prejudicar cadeias habituais de produção e distribuição). Resultado, a inflação disparou…

Os bancos centrais voltaram assim, há cerca de um ano, à sua missão primordial: defender o valor da moeda, no caso do BCE, o Euro. Como?

Utilizando as taxas de juro principais, que são três, mas duas são de longe as mais importantes:

TAXA DE JURO DOS DEPÓSITOS NO BANCO CENTRAL

Com a política de subida da taxa de juro dos depósitos no BCE (depósitos de dinheiro dos bancos normais ou comerciais e de investimento nos cofres do BCE), o dinheiro que regressa ao banco central pode literalmente ser destruído, apagado do balanço, deixando de existir. Assim, desce a quantidade de massa monetária em circulação e desce a pressão para os preços subirem; (em contraponto os bancos são bem remunerados com a taxa de depósito alta e mantêm o dinheiro mais tempo no banco central sem o aplicar na bolsa ou sem emprestar tanto como habitualmente às famílias e as empresas).

TAXA NORMAL DE REFINANCIAMENTO AOS BANCOS (REFI, NO CASO DA ZONA EURO)

Esta taxa é a que é utilizada para os bancos centrais emprestarem dinheiro aos bancos comerciais ou de investimento para estes fazerem negócios normais, emprestarem às famílias e às empresas ou investir nos mercados financeiros. Quando há crise, os bancos centrais baixam-na (política monetária “dovish” (de pombas) ou taxas de juro favoráveis para os agentes económicos); quando há inflação os bancos centrais sobem-na (política monetária “hawkish” (de falcões) para tornar o dinheiro mais caro e desincentivar os agentes económicos de o investir, mantendo-o poupado nos bancos e estes a depositá-lo nos bancos centrais.

TAXA DE CEDÊNCIA DE LIQUIDEZ OU REFINANCIAMENTO URGENTE OU OVERNIGHT (DE UM DIA PARA O OUTRO)

É utilizada para situações pontuais de empréstimo por necessidades pontuais urgentes dos bancos, é a mais elevada de todas, mas não é utilizada em massa, por isso não é um instrumento eficiente de política monetária, a não ser para ajudar a resolver crises bancárias agudas.

Durante muitos anos, o BCE manteve o diferencial da taxa REFI para a de DEPÓSITO EM 0,5 pontos percentuais ou 50 pontos base. Os ciclos de recessão eram bem marcados sem inflação e os de inflação eram bem vincados sem recessão. A distância entre uma e outra mantinha-se sempre. Os investidores, como fundos, os bancos e os jornalistas do Financial Times que escrevem para eles preferiram sempre falar da taxa de Depósito porque era através deste indicador que percebiam se o banco central deixava mais ou menos dinheiro para circular no sistema bancário ou se “forçava a recolha aos seus cofres” e ficava menos dinheiro para investir nas bolsas e nos negócios em geral. Esta taxa serve assim a perspetiva do investidor. É claro que a taxa de Depósito influencia as Euribor, mas para a realidade portuguesa a influência exercida pela taxa REFI nas taxas Euribor é mais relevante, como veremos adiante (na verdade as duas influenciam as Euribor)

Já as empresas e sobretudo as famílias e os jornalistas que escrevem para estes agentes económicos sempre usaram a taxa de refinanciamento dos bancos pelo BCE como indicador para perceber se o dinheiro estava a ficar mais ou menos caro na fonte.

Em Portugal, uma vez que o grande público tem sobretudo taxas variáveis nos empréstimos, este critério sempre foi o mais importante para analisar as decisões do BCE, porque a taxa REFI influencia diretamente as Euribor e estas influenciam diretamente as nossas prestações mensais dos empréstimos da habitação e do automóvel. A SIC sempre usou esta taxa nas suas notícias sobre decisões do BCE.

Enquanto no centro e norte da Europa e na matriz anglo-saxónica as próprias famílias aforram mais e investem nas bolsas, em Portugal a regra é serem devedoras aos bancos.

Entretanto, a realidade económico-financeira da Europa, em particular da Zona Euro, tornou-se mais complexa nos últimos meses. A Alemanha está estagnada e em risco de recessão, a Zona Euro cresce muito pouco e a conjuntura mundial pode piorar. A baixa do preço do crude é o mais eficiente indicador desta tendência negativa;

Mas por outro lado, a pressão dos preços altos ainda se faz sentir em muitos países, setores e áreas económicas. A média da inflação teima em não se aproximar dos 2 por cento, o referencial alvo do BCE.

Por isso, o Banco Central Europeu decidiu pela primeira vez em muitos anos sofisticar a sua política monetária, alterando o diferencial entre as duas taxas principais:

A presidente do BCE, Christine Lagarde
A presidente do BCE, Christine Lagarde Jana Rodenbusch

O BCE decidiu esta quinta-feira às 13 horas BAIXAR MENOS A SUA TAXA DE DEPÓSITO, EM APENAS 25 PONTOS BASE, de 3,75 para 3.50% (o juro que oferece aos outros bancos para que depositem o dinheiro nos seus cofres – podendo assim continuar a destruir moeda e reduzir a massa monetária);

Mas por outro lado decidiu BAIXAR MAIS O JURO DO DINHEIRO QUE EMPRESTA AOS BANCOS QUE QUEREM CONTINUAR A EMPRESTAR ÀS FAMÍLIAS E ÀS EMPRESAS, 0,6% - Assim, a taxa REFI desceu de 4,25 para 3,65.

Esta é a taxa que o público português está habituado a ver referida.

Se de um dia para o outro as redações passarem a utilizar a taxa de Depósito como lead nas notícias, os espetadores vão perguntar – Mas se os juros do BCE estavam nos 4,25 de repente baixou 0,6 pontos percentuais e está nos 3,5%?

Ninguém perceberá nem estas contas nem esta mudança brusca de critério.

Por outras palavras, o que o BCE está a fazer é a baixar mais os juros a que empresta dinheiro aos bancos para estes emprestarem mais e mais barato às famílias e às empresas, com o objetivo de combater a estagnação e os riscos de recessão; E, por outro lado, está a cortar menos os juros que paga aos bancos pelos depósitos destes nos cofres do BCE para que mantenham mais tempo as suas reservas de dinheiro no banco central e assim este possa controlar melhor a massa monetária e, no fim da linha, a própria taxa de inflação.

Pelas razões expostas, para os portugueses perceberem convém manter o foco na taxa REFI e, de caminho, ir também referindo a de DEPÓSITO.