Por que resolveram avançar com o projeto 3 F – Financiamento, Fórmula para o Futuro?
O 3F é uma iniciativa da APAH, que começou em 2018, e que conta com o apoio da Roche e o desenvolvimento da IQVIA. Esta iniciativa juntou vários especialistas que refletiram sobre os principais obstáculos que afetam o financiamento dos hospitais do Serviço Nacional de Saúde (SNS), identificando, por conseguinte, as ineficiências na rede de prestação de cuidados. Com essa avaliação, desenvolveram-se possíveis soluções que, acreditamos, podem melhorar o modelo de prestação de cuidados de saúde em Portugal. Concretamente, deve-se apostar mais no valor em saúde, que medido através de resultados, custos e impacto sócioeconómico da prestação de cuidados. No modelo clássico, os prestadores (médicos, hospitais…) são, em regra, pagos de acordo com os serviços que prestam ou com o tempo e os recursos que despendem para realizar uma determinada intervenção. É possível melhorar a forma como financiamos os hospitais. É preciso mudar o paradigma, para que se possa reduzir, de facto, o desperdício e investir mais na inovação.
Desde 2018 foram implementados dois projetos-piloto, mas um ficou parado… O que aconteceu?
O projeto-piloto Polaris consistiu na implementação de um modelo de financiamento de base populacional focado na integração de cuidados e na prevenção e promoção da saúde na área de abrangência do Centro Hospitalar de Trás-os-Montes e Alto Douro (CHTMAD). Na prática, pretendia-se reduzir os episódios de urgência hospitalar de doentes crónicos, criando-se um plano de intervenção para utilizadores frequentes. Infelizmente, acabou por não avançar como se previa por causa da pandemia, já que houve vários constrangimentos no acesso aos cuidados primários.
“Queremos que o financiamento pela capitação seja melhorado e que o ajustamento pelo risco seja mais bem feito”
O mesmo não aconteceu com o Farol no IPO Porto. O que mais gostaria de destacar deste projeto?
O projeto-piloto Farol focou-se na adoção de um modelo de financiamento baseado na medição de indicadores clínicos e não clínicos e na gestão integrada da doença no tratamento do cancro do pulmão no IPO Porto. Primeiramente, ficou demonstrado que o tratamento destes doentes está subfinanciado em 80%. Ao fim de dois anos, com este trabalho concluiu-se que o financiamento deve ser distribuído de uma forma mais significativa e propõe-se assim que este se baseie no valor em saúde, medido através de inquéritos, os chamados PROM – Patients Reported Outcome Measures. Através de um questionário específico vai avaliar-se o impacto do tratamento na qualidade de vida do doente, não se fica somente pelo ato realizado.
O conceito de qualidade de vida do doente costuma ser diferente da visão do médico?
Grande parte dos hospitais são avaliados em função da sua produção, como o número de cirurgias, consultas. A questão central é que quando fazemos uma cirurgia ou um tratamento temos, no fundo, a nossa missão cumprida. Mas que impacto teve esse ato médico na qualidade de vida do doente? Vai conseguir regressar ao trabalho? Tem dores? Convive com o a família e os amigos? Queremos que o financiamento pela capitação seja melhorado e que o ajustamento pelo risco seja mais bem feito, tendo em conta as reais características da população, coisa que não tem acontecido. Nem sempre a visão do médico vai coincidir com a do doente no que diz respeito à qualidade de vida, daí ser importante aplicar questionários. Infelizmente, nos hospitais do SNS não se costuma ter em conta este indicador tão essencial.
E porquê?
Penso que se deva, essencialmente, à visão que se tem da governação em saúde. Por isso, a APAH quer chamar a atenção para esta necessidade de se mudar o paradigma atual. Existem casos clássicos, muito estudados em algumas patologias, como por exemplo no cancro da próstata. Existem várias intervenções que podem ser feitas perante o diagnóstico, tais como quimioterapia, radioterapia, cirurgia. Cada um destas opções tem consequências para o doente. Algumas são graves e impactantes, como é o caso da incontinência urinária ou da disfunção sexual. Importa perceber estes e outros riscos associados e o que o doente quer. Até quando se analisam diferentes fármacos, o foco está maioritariamente no resultado. Ter noção do impacto real na qualidade de vida permitirá, inclusive, fazer acordos de partilha de risco com os fornecedores e ajustar preços. É um contrassenso estarmos a comprar medicamentos ou equipamentos e depois não medirmos o seu valor em saúde.
Na avaliação ao projeto-piloto do IPO Porto, os especialistas concluíram que é necessário criar um modelo de financiamento alternativo com base no valor em saúde para tratamento dos doentes com cancro do pulmão, revendo o montante pago pela Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) aos hospitais que tratam esta doença. A proposta alternativa contempla a inclusão de incentivos por resultados em saúde obtidos, uma componente que seria variável. Assim, os hospitais passariam a receber um montante mensal maior por doente para a componente fixa, acrescido de uma componente variável em função dos resultados (relativo aos indicadores clínicos e aos reportados pelo doente).
“… é preciso começar a dar passos concretos, com projetos nos hospitais que permitam medir a qualidade de vida”
É também uma forma de diminuir a ineficiência?
Sem dúvida. Quando se fala em ineficiência existe uma relação entre aquilo que se gasta e o que se obtém. Obviamente, o resultado final da terapêutica é uma dimensão importante, que tem de ser valorizada, mas não basta. Note-se: ninguém está à espera que o SNS passe, de imediato, para uma Medicina baseada no valor. Mas é preciso começar a dar passos concretos, com projetos nos hospitais que permitam medir a qualidade de vida. E depois, ao fim de uns anos, deve-se então discutir o modelo de financiamento com base em PROM.
As últimas recomendações do 3 F, apresentadas em maio deste ano, focam-se nas unidades locais de saúde (ULS). O que gostaria de destacar?
O SNS, de uma forma global, está a transformar-se e, como se sabe, as ULS começaram por ser financiadas por capitação, não somente com base na produção. Mas, nos últimos, tempos, este modelo transitou para um financiamento com base num orçamento global. Os peritos que estiveram envolvidos no 3 F propõe que se recupere o modelo por capitação, tendo em conta as características reais da população de cada ULS, mas incluindo a medição de alguns indicadores como o valor em saúde. Existem alguns detalhes que também têm de ser tidos em conta. As ARS vão ser descontinuadas e, como a comparticipação dos medicamentos é feita pelas ARS, deve voltar a ser da responsabilidade das ULS. Com esta medida poder-se-á inclusive contribuir para uma maior eficiência na área do medicamento. O ganho obtido deve reverter para as equipas. Os serviços de urgência devem também ser financiados consoante a sua disponibilidade. Na verdade, esta metodologia de financiamento dos serviços de urgência foi aplicada nos hospitais em parceria público-privada (PPP).
São medidas que acabam por também alterar a prestação de cuidados, já que o próprio profissional de saúde, na sua prática clínica, tem uma noção mais clara do que é o valor em saúde e vai tomar decisões com base nesse pressuposto?
Sim. Os profissionais têm, obviamente, que prestar cuidados adequados, mas ao mesmo tempo podem pensar com base na medicina do valor. Olhando para o valor em saúde, caminha-se no sentido de se apostar muito mais na promoção da saúde e na prevenção da doença. Quando as ULS recebem um pagamento global tendo em conta as características da sua população, têm logo um forte incentivo para manter a sua população saudável.
“Estamos a meio de 2023 e mais de metade dos Planos de atividades e Orçamento (PAO) dos Hospitais continuam por aprovar”
O valor em saúde poderá fomentar uma maior autonomia e responsabilização das instituições?
Sim, a questão da autonomia é muito importante. Os Hospitais não têm tido autonomia para, por exemplo, contratar um profissional ou para comprar um equipamento. Apesar de as unidades precisarem de recursos humanos e materiais, têm de esperar muito tempo, porque é preciso obter autorização do Ministério das Finanças. E nem sempre se aprova o pedido. Foi criada a ilusão de que os hospitais teriam maior autonomia, contudo na prática não é bem assim. Estamos a meio de 2023 e mais de metade dos Planos de atividades e Orçamento (PAO) dos Hospitais continuam por aprovar. É uma falha do Ministério das Finanças, porque a Saúde já deu o seu aval. Além disso, os PAO que foram aprovados, foram amputados de parte significativa das contratações propostas. A falta de autonomia conduz à ineficiência e à falta de produtividade.
E que impacto poderá ter na articulação entre os diferentes níveis de cuidados?
Esse é outro ponto fundamental. No caso específico das ULS, defendemos que haja um único processo de contratualização, trabalhando com objetivos comuns. Atualmente, isso não acontece. Temos um quadro de indicadores que avalia os hospitais e um outro para os CSP, dentro da mesma ULS. Isto é um paradoxo! Qual é o objetivo? Numa real integração de cuidados tem de haver um quadro comum de indicadores.
Que obstáculos poderão enfrentar na implementação deste paradigma baseado no valor em saúde? A ideologia política?
Não, a ideologia não tem nada a ver com esta questão. Os hospitais tendem a focar-se mais nos seus recursos, na sua forma de organização clássica e têm muitas vezes alguma dificuldade em evoluir para outras formas de organização. Por exemplo, quando falamos em horários, os hospitais tendem a organizar-se muito mais em função daquilo que, classicamente, são os seus horários e a sua organização, do que, por exemplo, procurar respostas que são do interesse dos doentes – consultas fora de horas. Além disso, não existe a prática corrente de se trabalhar em conjunto com os doentes. É necessário este diálogo permanente, inclusive com associações de doentes.
Acresce a esta mudança a necessidade de se apostar mais na carreira de administrador hospitalar?
Claramente. Os administradores hospitalares têm um papel fundamental na gestão e devem ser agentes de transformação dos hospitais. A nossa carreira está por rever há mais de 20 anos. Os Administradores Hospitalares Portugueses não têm avaliação de desempenho, nem qualquer tipo de desenvolvimento e progressão profissional. Esta situação é responsabilidade dos sucessivos governos que nada têm feito para regularizar esta situação e resulta em grave prejuízo para o SNS e para os seus Hospitais.
Texto: Maria João Garcia
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