Quando surgiu a ideia de criar a APTH?

Já há algum tempo que se percebia que havia uma necessidade fundamental de existir uma sociedade científica multidisciplinar dedicada à área da trombose e hemostase. Em Portugal não havia nenhuma sociedade que se dedicasse a esta problemática de forma transversal, ou seja, que englobasse várias especialidades médicas e outras valências da Saúde, como Bioquímica, Biologia, Farmácia, entre outras. É essencial haver um intercâmbio entre todos os profissionais que lidam com a trombose e hemostase. Não se pode esquecer que as alterações da hemostase, sejam associadas a hemorragia ou trombose, são desafios em múltiplas situações clínicas, em homens ou mulheres e em todas as faixas etárias. Este intercâmbio permite contribuir de forma mais eficiente para a evolução desta área e, por conseguinte, para uma otimização da prática clínica.

Nesta primeira reunião da APTH, o objetivo é essencialmente partilha de experiências?

Sim, sem dúvida. Será, antes de mais, a apresentação dos nossos objetivos, mas também haverá discussão de temas entre profissionais de diferentes áreas, nacionais e estrangeiros. Vamos ter médicos de Imuno-hemoterapia, Obstetrícia, Cardiologia, Neurologia, Medicina Intensiva, entre outros, para fomentar desde já uma maior interligação entre todos. São especialidades, nas quais a hemostase está presente quer na sua vertente trombótica quer hemorrágica.

Qual o impacto da trombose atualmente?

As doenças cardiovasculares e a patologia trombótica são a principal causa de morbilidade e mortalidade dos países desenvolvidos. Tudo o que possa minorar o seu impacto é sempre uma mais-valia. Há 15 anos, quando surgiram os anticoagulantes orais diretos – então, conhecidos como novos anticoagulantes orais -, toda a comunidade científica, assim como a própria indústria farmacêutica, sentiu necessidade de incentivar a organização de sessões científicas que alertassem para o risco trombótico e a forma de o reduzir. E, de facto, isso foi extremamente benéfico para a saúde em Portugal.

Na realidade, tínhamos (e ainda temos, apesar de algumas melhorias), múltiplos doentes com fibrilhação auricular, que sabemos estar associada a um aumento de risco de acidente vascular cerebral (AVC), que não estavam devidamente diagnosticados ou acompanhados. Contudo, a maioria tem indicação para anticoagulação. As sessões contribuíram para um maior alerta sobre o problema e para que se tratasse estes doentes de forma mais adequada. Hoje assistimos a um aumento do diagnóstico da fibrilhação auricular e de instituição de anticoagulação oral, com todo o impacto positivo que estas medidas têm na saúde pública.

“Não nos podemos esquecer que, por exemplo no cancro, o tromboembolismo venoso (TEV) é a segunda causa de morte”

Regra geral, fala-se muito da importância dos estilos de vida saudável para prevenir eventos trombóticos. Mas que peso tem a existência de determinadas patologias?

Hábitos de vida saudável são essenciais. No entanto, não nos podemos esquecer que a patofisiologia da trombose é complexa e multifatorial com vários fatores adquiridos, transitórios ou permanentes, assim como fatores hereditários, a poderem contribuir para o evento trombótico. Quando nos referimos à trombose, estilos de vida menos saudáveis, como o sedentarismo, alimentação não saudável, obesidade associada, tabagismo, aumentam o seu risco. Mas há outros fatores de risco, como cirurgia, cancro e trombofilias hereditárias, que também estão implicados. Nestas situações, é fundamental transmitir-se a mensagem de que é preciso estar atento a todos os doentes que necessitam de profilaxia antitrombótica de forma a reduzir a incidência de trombose. Não nos podemos esquecer que, por exemplo no cancro, o tromboembolismo venoso (TEV) é a segunda causa de morte.

A trombose afeta homens e mulheres, mas no sexo feminino existem algumas especificidades como no caso do EAM, em que os sintomas passam por vezes mais despercebidos?

Há fatores de risco que são comuns a homens e mulheres, como a idade, cirurgias, imobilidade prolongada, cancro, trombofilia hereditária, entre outros. Todavia, na mulher existem oscilações nas suas características biológicas e hormonais que levam a que haja, nalgumas fases da vida, um aumento do risco trombótico. E porquê? Porque o aumento de estrogénios, sejam naturais ou terapêuticos, leva a uma alteração da hemostase, com aumento dos fatores pró-coagulantes, diminuição dos inibidores naturais da coagulação ou alteração de fibrinólise. Tudo isto contribui para um estado pró-trombótico. Obviamente outros fatores de risco podem coexistir e atuar de forma sinérgica para que ocorra um evento trombótico, como por exemplo uma trombofilia, quer seja hereditária quer seja adquirida (caso da síndrome antifosfolipídica), ou outros (obesidade, tabagismo, hipertensão, etc.)

Já é comum apostar-se na profilaxia antitrombótica ou ainda é preciso melhorar essa orientação nalgumas áreas?

Tem havido um aumento da instituição da profilaxia. Existem várias recomendações e protocolos para estratificação do risco e administração de profilaxia antitrombótica em vários cenários clínicos, nomeadamente nos doentes oncológicos e doentes hospitalizados médicos ou cirúrgicos. O mesmo se passa com a prevenção da trombose na gravidez, existindo guidelines de várias sociedades científicas. É um período da vida da mulher em que, além do impacto do aumento de estrogénios, ocorre a compressão dos vasos pelo útero gravídico, e a lesão vascular durante o parto. E, note-se, é um risco muito mais elevado do que o que está associado a contracetivos orais. Frequentemente, imuno-hemoterapeutas e ginecologistas debatem esta questão do risco associado à contraceção hormonal. Na prática, devemos ser cautelosos, optando pelo método contracetivo que melhor se adequa a cada mulher, evitando a gravidez que apresenta um risco muito superior. Aliás, atualmente, já existem contracetivos orais com risco bastante baixo de TEV.

“A APTH tem como objetivo principal entusiasmar os mais jovens a compreenderem melhor a hemostase nas suas diferentes vertentes”

Outra situação clínica que vai ser abordada no evento é o do doente em ECMO? Quais são os desafios?

Um doente em técnica de ECMO está numa situação clínica grave, em que há a necessidade de substituição parcial ou total da função respiratória e/ou circulatória. No entanto, embora fundamental em cenários concretos, não é isenta de complicações, sendo os eventos trombóticos e os eventos hemorrágicos, quer associados à anticoagulação instituída, quer à técnica em si, umas das complicações mais frequentes. São doentes que podem apresentar alterações que também contribuem para a coagulopatia, como por exemplo, trombocitopenia, infeções graves / sepsis ou que podem ter sido sujeitos a intervenções cirúrgicas complexas com elevado risco hemorrágico. É preciso que haja um equilíbrio da hemostase apertado para se prevenir quer tromboses quer hemorragias. Mas nem sempre é fácil atingir este objetivo, sendo muito importante uma abordagem multidisciplinar nestes doentes.

Relativamente ao futuro da APTH, o que se pode esperar?

A APTH tem como objetivo principal entusiasmar os mais jovens a compreenderem melhor a hemostase nas suas diferentes vertentes. Queremos ajudá-los com formações e vamos também criar grupos de trabalho que se destinam a diferentes áreas médicas e outros profissionais ligados ao estudo da hemostase. Também iremos organizar cursos e reuniões de formação. O lema é contribuir para a evolução do conhecimento, incentivando todos aqueles que consideram esta área fundamental para a sua atividade, seja clínica ou laboratorial.

Que mensagem gostaria de deixar a quem queira integrar a Associação?

É preciso olhar para a trombose e a hemostase como uma área nobre da Medicina, por ser detentora de um riquíssimo terreno clínico, básico e de investigação. O exemplo maior é a Sociedade Internacional de Trombose e Hemostase que tem inúmeros membros de diferentes áreas e tem tido um papel crucial na evolução científica e divulgação de conhecimento. Também diversas sociedades de países europeus, como a SETH, na nossa vizinha Espanha, têm tido um grande impacto na trombose e hemostase. A APTH pretende ter a mesma função e permitir que, a nível nacional, haja uma cooperação entre diferentes profissionais, a fim de aumentar o conhecimento e a investigação. A interdisciplinaridade é fundamental! Ao longo da minha carreira profissional aprendi sempre imenso com outras especialidades.

Maria João Garcia