Qual a relação entre microbioma e endometriose?

Khan e colegas em 2018 propuseram a “hipótese de contaminação bacteriana” para explicar a relação entre endometriose e microbioma: as endotoxinas bacterianas ativam uma resposta pró-inflamatória peritoneal, aumentam a capacidade de aderência célula a célula e facilitam o crescimento de implantes endometriais ectópicos. As alterações do microbioma podem também participar na fisiopatologia da endometriose, favorecendo um ambiente hiperestrogénico ao condicionarem alterações no estroboloma (microbioma intestinal envolvidos no metabolismo do estrogênio) e metaboloma (metabólitos totais do intestino).

A atividade do estroboloma modula a quantidade de estrogénio em excesso que é eliminada ou reabsorvida pelo intestino. Algumas situações de disbiose no microbioma intestinal condicionam um aumento de estrogénios disponíveis para serem absorvidos e via circulação serem disponibilizados para o ambiente endometrial e peritoneal condicionando um hiperestrogenismo favorável ao desenvolvimento da endometriose.

O metaboloma é fortemente influenciado pela atividade microbiana intestinal, e inclui metabólitos neuro-ativos que afetam o cérebro e sua sinalização. Essa ligação bidirecional é chamada de eixo intestino-cérebro e estes compostos ligam-se aos recetores da hormona libertadora de gonadotrofinas (GnRH) do hospedeiro para estimular a produção de hormona luteinizante (LH) e hormona folículo-estimulante (FSH), que estimulam a produção de estrogênio e contribuem para o clima hiperestrogénico.

Assim e, de forma resumida, existe crescente evidência de que alterações no microbioma (disbiose) podem estar associadas à endometriose e que a disbiose intestinal, e também do trato genital, pode participar na fisiopatologia da endometriose, condicionando alterações nos processos inflamatórios e de imunovigilância e criando condições para um ambiente hiperestrogénico. No entanto, desconhece-se se um microbioma alterado causa o desenvolvimento e progressão da endometriose ou vice-versa.

“… a falta de consenso sobre o que define um microbioma intestinal saudável e a multiplicidade de fatores que influenciam a composição do microbioma intestinal humano dificultam o desenvolvimento de recomendações dietéticas”

De que forma se pode melhorar a microbiota?

São múltiplos os fatores que afetam o microbioma humano, em particular o intestinal. O microbioma adulto é altamente influenciado por múltiplos fatores como a idade, a etnia, fatores genéticos, tipo de dieta, exercício físico e o estilo de vida, nomeadamente o nível de stress, hábitos nocivos (qualidade de sono, tabagismo e consumo excessivo de álcool e drogas), assim como a exposição a fatores ambientais tóxicos, incluindo os que os que causam disrupção endócrina (EDCs) e tratamentos médicos como a quimioterapia.

De uma forma relativamente simplista é de referir que podemos contribuir para manter o microbioma saudável se investirmos em alterar fatores de risco modificáveis como o nível de stress, a prática de exercício, hábitos nocivos, tipo de dieta e a exposição a fatores ambientais adversos. A modificação destes fatores tem também um papel importante como fator protetor adicional de equilíbrio para mitigar o impacto da idade e os efeitos de medicação instituída (quimioterapia e antibioterapia).

No entanto, a falta de consenso sobre o que define um microbioma intestinal saudável e a multiplicidade de fatores que influenciam a composição do microbioma intestinal humano dificultam o desenvolvimento de recomendações dietéticas apropriadas para um microbioma intestinal saudável. Além disso, a resposta variada à ingestão de probióticos e prebióticos observada em adultos saudáveis sugere a existência de potenciais fatores inter e intraindividuais, que podem explicar as mudanças no microbioma intestinal em maior extensão do que a dieta.

Ainda assim, podemos dizer que tendencialmente uma dieta rica em legumes, frutas e fibras, que inclua proteínas animais, mas reduza o consumo de carne vermelha, açúcar e o consumo de álcool, e evite os alimentos processados, contribui para um microbioma mais saudável. Modificações no estilo de vida com aumento do exercício físico regular, diminuição do stress, melhoria da qualidade do sono e a modificação de hábitos nocivos são também medidas aconselháveis e que devem ser aplicadas em conjunto com as modificações dietéticas. Em função dos múltiplos fatores intervenientes e diferenças encontradas na metodologia dos diferentes estudos realizados o aconselhamento deve ser individualizado.

Nos últimos tempos tem-se falado muito em microbiota. Em termos de investigação, tem-se apostado na relação com a endometriose?

Esta é uma área em que a investigação tem vindo a crescer recentemente e na qual continuará certamente a registar-se um investimento. Numa revisão sistemática de 2022 foram identificados 12 estudos acerca do tema e, apesar das limitações desses estudos, incluindo metodologias heterogéneas para identificação e tipagem de bactérias, vários locais de colheita das amostras de microbioma (fecal, vaginal, cervical, peritoneal, endometrial e intralesional), da heterogeneidade significativa entre pacientes com endometriose e dos chamados controles e os vieses de publicação inerentes, várias tendências parecem destacar-se desses estudos.

Vários estudos sugerem que o líquido peritoneal parece conter uma distribuição diferente de bactérias nas mulheres com endometriose assim como a endometriose parece estar associada a microbiomas endometriais e cervico-vaginais não lactobacilos dominantes (<90% Lactobacillus spp., com >10% de outras bactérias) e a alterações no microbioma fecal com uma elevação da razão Firmicutes/Bacteriodetes. Para além destes estudos, também se têm realizado outros em modelos animais para endometriose com o objetivo de estudar as mudanças no microbioma, especificamente para entender como o microbioma e as suas alterações podem estar envolvidos na patogénese da endometriose, bem como a sua influência na progressão da doença.

“A consulta de Ginecologia serve para introduzir o tema e enfatizar a importância dos regimes alimentares no controle dos sintomas, quando utilizados em conjunto com o tratamento farmacológico e/ou cirúrgico”

Nas consultas de Ginecologia dever-se-ia abordar mais a questão da alimentação?

Considero que sim, dada a importância e o impacto dos regimes alimentares na saúde em geral e em particular na saúde da mulher. Nesse contexto percebe-se a importância de fornecer conselhos ou até estabelecer regimes alimentares adaptados a determinados tipos de patologia. A consulta de Ginecologia serve para introduzir o tema e enfatizar a importância dos regimes alimentares no controle dos sintomas, quando utilizados em conjunto com o tratamento farmacológico e/ou cirúrgico. No entanto, um aconselhamento mais diferenciado por profissionais da área pode ser necessário.

Não havendo as condições ideias, que mensagem gostaria de deixar aos seus colegas ginecologistas para não esquecerem a importância da microbiota?

Diria que a importância que atualmente se dá ao microbioma humano na fisiopatologia de muitas doenças, nomeadamente das do foro ginecológico, é um estímulo para que nos mantenhamos atentos aos avanços científicos, mas também para que todos revisitemos os nossos conhecimentos nesta área. Refiro-me, por exemplo, ao facto nos mantermos atualizados quanto à importância da realização de um simples exame a fresco das secreções cervico-vaginais no contexto de uma consulta de Ginecologia.

Texto: Maria João Garcia

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