Foto: Marina Cruz
Porquê este curso para a MGF?
Na sua conceção original, o PrimariaMente foi pensado pelos internos de Psiquiatria do CHUC como uma forma de fomentar um diálogo mais aprofundado com internos de MGF, colocando a questão: qual é o papel de cada especialidade na promoção da saúde mental e no tratamento de quadros psiquiátricos na população que servimos? A verdade é que, apesar de não ser sempre o caso, o médico de família é a primeira linha de recurso do cidadão português a cuidados de saúde, tanto física como mental, e há muito que este pode fazer antes de referenciar doentes que requeiram cuidados mais especializados para a Psiquiatria. Ao procurarmos divulgar informação e atualização sobre temas da Psiquiatria, queremos essencialmente isto: que os nossos colegas se sintam munidos de conhecimentos que lhes permitam gerir e abordar patologia psiquiátrica com maior confiança.
Este curso cria abertura para se estabelecer maior proximidade entre internos de Psiquiatria do CRI do CHUC e de MGF da região centro, principalmente se considerarmos o contacto próximo entre elementos da comissão organizadora do curso, no seio da qual se gera uma espécie de linha aberta entre internos de ambas as especialidades. À medida que trabalhamos em conjunto vamos adquirindo mais à vontade para interagir e colocar dúvidas e é conveniente a criação destes contactos para agilizar a comunicação, na prática clínica diária, entre cuidados de saúde primários e hospitalares.
Algumas patologias são mais comuns nos cuidados primários como a perturbação da ansiedade. Mas há outras patologias psiquiátricas mais graves, como a psicose ou a mania. Qual é exatamente o papel do MGF nestes casos?
O papel de um médico de MGF é muito desafiante, porque se espera muito deles; todas as especialidades pedem que saibam o suficiente da sua para manter o doente estável entre consultas (que, por exigências variadas, são espaçadas por vários meses). A colocação deste ónus na MGF coloca um peso tremendo sobre os médicos dos cuidados de saúde primários. Não se pretende que um médico de família seja um psiquiatra, mas é positivo que possa sentir-se confiante a fazer uma abordagem inicial, a iniciar um psicofármaco, a reconhecer sinais de uma descompensação de um quadro clínico complexo ou a tentar fazer um ajuste de medicação caso necessário. Nos casos de psicose e de mania existem sinais que antecedem a progressão para um quadro francamente descompensado e que exija intervenção por Psiquiatria e é bom haver alguém que tenha o discernimento clínico para os captar e tentar evitar que cheguem a esse ponto. Muitas vezes, essa pessoa é o médico assistente do centro de saúde, que tem acesso a informação privilegiada a que os médicos hospitalares nem sempre terão com a mesma prontidão (através do contacto com familiares, por exemplo).
“Em Portugal, o tema da sexualidade é ainda algo tabu, mas é uma parte importante da vida das pessoas e que contribui, positiva ou negativamente, para a sua satisfação com a vida e relações com parceiros”
Vão ainda abordar, num workshop, os comportamentos auto lesivos na infância e na adolescência. É um problema cada vez mais comum?
Há evidência de que estarão a aumentar, sim, tendo havido um impacto importante do período da pandemia nos mesmos. Em relação a estes, muitas vezes é difícil fazer a gestão do que será adequado fazer ou dizer para melhor gerir o quadro. Há frequentemente fatores psicossociais complexos que não terão necessariamente que ver com doença psiquiátrica, embora frequentemente sejam manifestações de ansiedade e depressão. Há, cada vez mais, a influência das redes sociais na criação de ideias (maioritariamente erróneas) sobre doença mental e a imitação de conteúdos ou atitudes que nem sempre serão as mais corretas na gestão emocional, que é sempre um desafio na adolescência. Acresce a isto que a população pediátrica requer uma abordagem diferente da dos adultos, em termos de diálogo, havendo inclusive reticência ou dúvida em relação à necessidade de iniciação (ou não) de psicofármacos. Tudo isto contribui para que haja interesse na formação sobre como lidar com estas situações.
Relativamente à sexualidade, a que deve estar atento o médico de família?
Em Portugal, o tema da sexualidade é ainda algo tabu, mas é uma parte importante da vida das pessoas e que contribui, positiva ou negativamente, para a sua satisfação com a vida e relações com parceiros. Há muitas dúvidas, na população geral, quanto ao que será ou não normal e saudável, quanto a como agir perante a disfunção sexual no homem e na mulher, e quanto ao impacto importante de muitas doenças médicas (cardiovasculares e metabólicas, predominantemente) e da toma de medicação (sendo bem conhecido no caso dos antidepressivos) na sexualidade. Um médico de família poderá, mais uma vez, ser a primeira pessoa que o doente aborda sobre estes problemas e é importante poder desmistificar, validar e legitimar preocupações, efetuar alguma psicoeducação e, eventualmente, identificar alguma questão mais premente, como uma parafilia com repercussão importante na funcionalidade do doente, que justifique intervenção e seguimento em consulta especializada de Sexologia.
“A paucidade de estudos efetuados com psicofármacos durante a gestação e amamentação, devido aos riscos associados de eventuais efeitos teratogénicos, e por questões ético-legais que daí decorrem, gera desconforto e insegurança”
No caso da psicofarmacologia na gravidez e amamentação, ainda persiste a ideia de que mulher não pode tomar medicamentos?
Existe ainda, indubitavelmente, muito medo, tanto da parte de mulheres grávidas e respetivos parceiros, como, frequentemente, por parte dos médicos, em relação à segurança da toma de muitos fármacos durante a gravidez e após o parto. A paucidade de estudos efetuados com psicofármacos durante a gestação e amamentação, devido aos riscos associados de eventuais efeitos teratogénicos, e por questões ético-legais que daí decorrem, gera desconforto e insegurança sobre a adequação da sua prescrição. Em mulheres com doença mental, este dilema de como medicar impõe-se de forma redobrada, sendo tanto maior quanto a gravidade da doença e risco de desestabilização. Além disto, atendendo ao ambiente neurohormonal complexo e ainda com muito por esclarecer (a ciência encontra-se enviesada no sentido de favorecer um modelo de biologia homogeneizada usando o homem como standard), só em anos mais recentes se tem prestado mais atenção às minúcias das diferenças de efeitos dos mesmos psicofármacos em homens ou mulheres.
No caso do idoso, quais os principais desafios, já que a população acha que é normal estar triste e com lapsos de memória nessa faixa etária?
Há muita coisa que acaba por ser erradamente normalizada no nosso país em relação à terceira idade; é possível envelhecer com qualidade, mas parecemos coletivamente ignorar esta possibilidade e assumir que a toma diária de mais de 10 fármacos, dores osteomusculares, cansaço, tristeza e degeneração progressiva das capacidades cognitivas são a norma. É um facto que temos uma população envelhecida e, muitas vezes, com maus hábitos alimentares, consumos socialmente aceites de álcool e sedentarismo, contribuindo para a patologia médica crónica e subsequente polifarmácia. A MGF serve, com o seu acompanhamento longitudinal, um papel importante no aconselhamento em saúde para promover um envelhecimento mais saudável para evitar o aparecimento de sintomatologia depressiva e causas modificáveis de neurodegeneração. Precisamente por isto, é importante ter sólidas noções de como medicar adequadamente, tendo em conta a carga anticolinérgica de certos fármacos, sabendo quando iniciar antidemenciais (e quais) e que efeitos adversos incomuns noutras faixas etárias podem surgir. Além disto, muitas vezes importa saber como lidar com o surgimento de agitação e sintomas psicóticos em idades avançadas. Todos estes desafios surgem na comunidade.
No evento vão ainda abordar, entre outros temas, as perturbações do sono. Irão falar sobretudo de insónia?
A insónia é um problema muito comum, em estreita relação, muitas vezes, com sintomatologia ansiosa e depressiva. Como tal, acaba por ser o fulcro das sessões que abordam este tema. Contudo, há muitas outras manifestações da patologia do sono que terão outras causas e consequências médicas e psiquiátricas, dado que o papel do sono na regeneração física e neuronal se encontra bem estabelecido e a sua boa qualidade é essencial para o correto funcionamento da pessoa. Notoriamente, é também amiúde desafiante corrigir o sono, tanto para médicos de MGF como para psiquiatras, pelo que se reveste de particular importância coordenarmos esforços para nos mantermos sincronizados nas nossas abordagens e podermos promover uma boa higiene do sono na população geral, quando possível.
MJG
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