No Beato Inovation District, antigo Hub Criativo do Beato, há uma mudança no ar. Um cenário alternativo. Prédios abandonados que deram lugar à Fábrica de Unicórnios, vão ser, nos próximos dois dias, terreno onde se partilham histórias através das mais variadas formas de arte, do cinema ao podcast. Há uma forma de arte, a chamada “ter lata”, que começou logo a ser praticada pela manhã, enquanto se ultimavam os preparativos de algo que nunca aconteceu por estes lados da capital. Um rapaz, com um caderno aberto na mão, está com um ar excitado.

Leva um autógrafo da Patty Jenkins, realizadora de “Mulher Maravilha”, que tinha acabado de sair de um carrinho de golf, veículo escolhido para transportar as figuras internacionais do Tribeca Lisboa, e que está prestes a entrar na talk “Beyond the Screen: What’s Next For Direct-to-Digital and What Does That Mean for Movie Theatres”, um dos muitos eventos a decorrer na primeira edição europeia do festival criado por Robert De Niro e Jane Rosenthal, que começou esta sexta-feira.

O rapaz, entre a desilusão e a felicidade que não soube esconder, não conseguiu um outro registo do actor famoso por papéis como “Touro Enraivecido” e “Taxi Driver”. Não admira. De Niro está com uma agenda apertada, apesar de já ter estado mais do que uma vez em Lisboa. Ao lado da co-fundadora de um festival que nasceu após a tragédia do 11 de setembro de 2011 em Nova Iorque, teve de estar presente numa conferência de imprensa no armazém reservado para a imprensa nacional e internacional e logo uma conversa, moderada pelo CEO do grupo Impresa, Francisco Pedro Balsemão, com o nome “Restoring Hope: How Tribeca Inspires the World Through Storytelling”. Cá fora, ao pé da zona de concertos onde Samuel Úria fazia o seu soundcheck para logo à noite, o presidente da Câmara Municipal de Lisboa, Carlos Moedas, trocava dois dedos de conversa com a atriz e comediante Whoopi Goldberg, sob o olhar atento de quem decidiu entrar no Tribeca logo pela manhã, e de quem ainda estava a ultimar os preparativos para a abertura de portas, que começou pelas 9h30, levando materiais de promoção de um lado para o outro.

Francisco Pedro Balsemão, CEO da Impresa, a atriz Whoopi Goldberg e Carlos Moedas, presidente da Câmara de Lisboa
Francisco Pedro Balsemão, CEO da Impresa, a atriz Whoopi Goldberg e Carlos Moedas, presidente da Câmara de Lisboa Ana Baiao

Logo a seguir ao screening do filme de César Mourão, “Podia Ter Esperado Por Agosto”, um dos filmes portugueses presentes no Tribeca, mostrado dentro de uma sala tão composta que alguns espectadores tiveram dificuldade em manter o silêncio, as figuras de peso do evento começaram a juntar-se. Não há tempo a perder. São 48 horas de festival, apenas. Whoopi Goldberg, Carlos Moedas, Francisco Pedro Balsemão juntaram-se a Patti Jenkins, ao actor Griffin Dune, ao produtor John Kilik e ao actor Chaz Palminteri, para uma brevíssima conversa com jornalistas. Cheirava ainda a tinta fresca lá fora quando, por último, De Niro se juntou à festa. Calmo, cool, poucas palavras. Iríamos ouvi-lo daqui a nada do outro lado do recinto. “Olhamos para os festivais internacionais, para França, para Itália, e nunca olhamos para Portugal. Era a jóia da coroa que faltava”, disse Palminteri, no seu sotaque italo-americano bem reconhecível, que entrou num filme de De Niro, Bronx Tale (1993).

Ao contrário de De Niro, que já conhece a tal jóia ao ponto de vir a abrir um restaurante na Avenida da Liberdade, quase nenhum dos presentes tinha estado neste canto do Atlântico anteriormente. E nunca o Tribeca, “festival de bairro” que tenta catapultar nomes-norte americanos da cena cinéfila independente, tinha saído dos EUA. Whoopi Goldberg disse mesmo que ficou deslumbrada quando chegou, elogio esperado, mas não pela razão que revelou. “Foi a primeira vez na minha vida que vi seis pilotos negros num aeroporto. E eu já tenho 112 anos”, disse. A discusão sobre racismo estrutural no país, que, de vez em quando, vai estando presente, poderia ter tido aqui um bom ponto de partida. Mas não houve tempo. A seguir, Francisco Pedro Balsemão, De Niro e Jane Rosenthal ensaiaram a conversa que teriam no Main Stage. Mas, Carolina Patrocínio, a apresentadora de serviço, não conseguiu arrancar ao actor norte-americano uma daquelas história curiosas (ou, fun facts, se quiser) sobre as suas anteriores estadias em Portugal. “É especial estar aqui”.

Chazz Palminteri
Chazz Palminteri Ana Baiao

Se Nelson Mandela chegou a estar presente numa das edições do Tribeca em Nova Iorque, foi necessário encontrar uma figura culturalmente relevante para marcar o momento político que o mundo vive. E não, não era Lili Caneças, que chegou atrasada à sessão principal. Há uma mistura de rostos inesperados nestes lados. Apesar de, nas regras deste evento, não ser aconselhado existir qualquer tipo de manifestação política, os protagonistas tinham um direito especial. Aliás, o momento político que os Estados Unidos vivem assim o exige, à beira de uma eleição que pode, ou não, confirmar o segundo mandato de Donald Trump, que vai medir forças com Kamala Harris. Ora, De Niro tem sido das figuras de Hollywood mais vocais contra o trumpismo. Na primeira Tribeca Talks, Francisco Pedro Balsemão teve dificuldade em arrancar respostas longas ao actor, mas assim que a conversa se virou para uma altura em que muita gente desconfia do que é verdade ou não, o co-fundador do Tribeca mudou o tom.

Porque o cinema, ao contrário da realidade, “não inventa factos alternativos, mas sim cenários alternativos” para que as pessoas possam lidar com situações delicadas das suas vidas, como aquela que, segundo uma parte relevante dos votantes dos EUA, poderá colocar Trump de novo na Casa Branca . “Hoje em dia o que é verdade é a grande questão, não devia ser. Trump está a destrui-la. Está a torcê-la e isso é assustador. Mas há sempre uma altura em que vemos um ponto de viragem onde se diz chega. No final de contas, a empatia é que tem de ganhar. Espero que aconteça agora já em novembro”, afirmou. Já Jane Rosenthal, o grande rosto por detrás deste evento que se foi expandido pela cidade que nunca dorme, acredita que o Tribeca, apesar dos desafios que a indústria enfrenta – pós-pandemia, greve dos actores e o crescimento do streaming – pode continuar a fazer aquilo para que foi desenhado. “Queríamos deixar uma memória na cidade. Encontrar a melhor forma de contar histórias porque o Tribeca continua a ser um festival de bairro e continua a ser uma oportunidade para, num mundo tão dividido, estarmos juntos a conversar”. Veremos se esse caminho continua a ter paragem em Lisboa.

TIAGO MIRANDA

De volta à zona de concertos, a hora do almoço começa a fazer com que o Food Hall encha. Dentro da Praça, onde vão decorrer as conversas da secção “Untold Stories”, é bem possível que o rapaz que pediu o autógrafo a Patty Jenkins tenha tentado arranjar lugar. A realizadora está ao lado do produtor Tony Gonçalves, de Diogo Brito (da produtora 313) e do produtor John Kilik, a colocar os microfones num backtsage improvisado, junto de uma grande prateleira cheia de garrafas de azeite. O elitismo deste tipo de festivais ganha também aqui um rosto descomplexado. Os convidados concordaram que é melhor que os filmes possam continuar a estrear em sala, ainda que plataformas como Max, Netflix e Prime Video tenham conseguido inverter o jogo depois da pandemia de Covid-19. E que países continuem a juntar forças em coproduções. E Patty Jenkins, a mais mordaz do painel, e que viu o seu “Mulher Maravilha 1984” a ser dos primeiros a estrear streaming em 2021, quis vincar que, apesar do streaming poder trazer mais financiamento e mais diversidade, não é possível esquecer a sala de cinema. Nem mesmo numa altura onde os números de espectadores são trágicos, tanto lá fora como em Portugal. “O problema é que o streaming não tem fenómenos culturais como o cinema. Tenho amigos com filmes nessas plataformas mas as pessoas não falam desses filmes. Por outro lado, a minha mãe ia ao cinema todos os dias, agora não há filmes para ela. Nem para mim, que sou realizadora”.