Teresinha: é hoje! Vais fazer o que dizem nos mil artigos que lês por semana sobre gestão trabalho-família, como não procrastinar, como viver de forma saudável, etc. Esquece os meses de coisas atrasadas e listas de tarefas infindáveis. Esquece o sentimento de culpa por andares sempre com compromissos pendentes. Hoje vais escolher só uma tarefa importante (não urgente – importante) e vais mesmo fazê-la até ao fim, sem interrupções, sem pensares em mais nada. E vais começar o dia com ioga e meditação. Hoje vai ser um dia estupidamente produtivo!

Levanto-me com o despertador às 6 da manhã, sem carregar no snooze. Primeira vitória. Casa silenciosa. Crianças a dormir. Água gelada na cara. É um choque, mas não é inteiramente desagradável, devia mesmo fazer isto todos os dias. No Verão, vá. Bebo um copo enorme de água. É suposto serem 2 litros por dia, não é? Já estou a começar bem. Tapete no chão da sala. Ligo a televisão quase sem som na app da ioga. Aparece uma frase supostamente inspiradora: “se vais desistir de alguma coisa, desiste de encontrar desculpas”. Esta bateu um bocadinho forte, mas siga. Vou ser modesta: 10 minutos. Ou deveria fazer mais tempo, já que estou inspirada? Não: começa pequeno e dá espaço para crescer. Ui, já estou a construir aquelas frases de poster na minha cabeça – isto promete.

Tantas opções. Se calhar devia mesmo fazer um daqueles desafios com vários exercícios, assim tinha uma orientação para os próximos dias. Ou devia mesmo pagar para ter acesso ao Premium. Teresa, não te distraias. Escolhe um ao calhas e faz: o importante é fazer! Segunda frase motivadora espontânea no espaço de segundos – isto hoje vai.

Respiro fundo. Uma vez. Duas vezes. A menina-da-app acolhe-me com palavras positivas. Já me estou a sentir zen. Começamos por um alongamento, que sabe maravilhosamente. Que promissor.

Barulho de uma porta a abrir. Não, não, não, não... não pode ser. Não é suposto estarem acordados a esta hora. Vou ficar caladinha, meio escondida, pode ser que não me vejam e voltem para a cama.

- Mamã!!

Pronto, já fui. Interrompo o vídeo, abro um sorriso e faço voz doce.

- Bom dia! É muito cedo, ainda deviam estar a dormir. Vão fazer xixi e voltem para a cama, sim?

- Não, Mamã, já não temos sono.

Instalam-se no sofá. Como é que é possível eles terem esta cara fofíssima quando acabam de acordar? Parecem dois anjinhos. Espera, vou-lhes só tirar uma foto num instante.

- Está bem, podem ficar, mas a Mamã precisa de sossego e de tranquilidade para fazer isto.

- Sim, Mamã, nós não falamos.

Seria a primeira vez... Não interessa, está tudo bem. Concentra-te, Teresa. Não te desvies do objetivo. Continuo.

- Mamã, não estás a fazer como a menina. As pernas dela estão mesmo todas esticadas.

- D., a menina é profissional e faz isto todos os dias, provavelmente há décadas, sim?

Continuo.

- Mamã, estás a fazer mal: os pés têm que estar todos no chão.

- S., a Mamã não consegue pôr os pés completamente no chão no downward facing dog, OK? Podemos parar de corrigir a Mamã?

Isto é carma: não lhes estou sempre a fazer o mesmo? É bem feita. Continuo.

- Mamã, o D. tocou-me na perna.

- Foi a S. que me tocou primeiro.

- Se vocês começam com isso, vão direitinhos para a cama.

Silêncio. OK, resultou. Continuo.

- Mamã, estou com fome.

- D., não vais comer a esta hora, ainda devias estar a dormir.

Continuo.

- Mamã, estou com dor de cabeça.

- Achas que foi por teres dormido pouco, S.?...

Respira fundo, Teresa. Isto até é positivo. Não andas com problemas de concentração? Tens que aprender a te abstrair do mundo à tua volta.

- Mamã, quando é que chega o meu bibe?

- Não sei, D., desculpa, ainda não está pronto.

Bolas, devia mesmo ter tratado do bibe em julho. Em agosto já foi tarde demais e o miúdo é dos poucos sem bibe na escola toda – que vergonha. Teresa: esquece isso! O mês de julho foi caótico e estiveste completamente assoberbada. As aulas começarem sem bibe não é o fim do mundo. Ioga, concentra-te na ioga!

Novo downward facing dog e um deles percebe que é giro rebolar por baixo de mim. O outro imita, claro.

- Parem quietos!

- Oh Mamã, não te estamos a tocar.

Risadas.

- Mas eu assim não me concentro! Voltem para o sofá. Ou vão brincar para o quarto. Isso: não preferem ir brincar para outro lado?

- Não, nós queremos ficar aqui.

Não sejas má Mãe. Eles querem estar contigo. Só os vês de manhã e ao final da tarde durante a semana e agora nem os queres deixar fazer-te companhia, no sofá? E já estavas a ficar irritada e a subir de tom. Logo de manhã? Controla-te, respira fundo e continua.

- Mamã, acho que tenho uma picada nova, vês?

- S., a Mamã já vê a seguir. A sério, deixa-me terminar, por favor!

Isso. Implora. Às vezes resulta.

Termino. A menina-da-app dá-me os parabéns por ter dedicado este tempo só para mim e para o meu bem-estar. Certo.

Será que ainda vale a pena pôr o vídeo da meditação? Só cinco minutos?

- Mamã...

Esquece.

Qual era mesmo o texto que eu tinha decidido começar logo de manhã? Ah, já sei: aquele sobre a segunda onda do feminismo e a separação entre esfera privada e pública ser uma invenção masculina.