A pesquisa tem de fazer parte do dia-a-dia de um jornalista. Na área do futebol, não há ajuda como zerozero.
O PSV-Sporting desta terça-feira estava na mente e a descoberta do português com mais jogos na Eredivisie aguçou a curiosidade para uma reportagem.
Arriscamos escrever que poucos - especialmente as gerações mais novas - conhecem David Nascimento em terras lusas. Maior é a surpresa quando percebemos a dimensão que tem conseguido no seu trabalho.
Mudou-se cedo para os Países Baixos, chegou a ser convocado para a seleção das Quinas e esteve perto de assinar pelo Sporting. Nos bancos, a paixão pelo futebol total e um percurso que o levou já a quatro continentes.
Um gosto conhecer melhor um percurso tão rico.
«Saí do meu conforto e foi uma grande experiência»
Aos 58 anos, David Nascimento é atualmente treinador do Den Bosch, equipa que começou bem a época na segunda divisão neerlandesa.
O gosto pelo desporto-rei surgiu na Margem Sul do Tejo, depois de ter chegado a Portugal ainda em criança.
«Nasci em São Vicente, Cabo Verde. Mudei-me para Portugal com seis/sete anos. Metade da minha família é do Funchal, na Madeira. Tinha já essa ligação ao país. Cresci na Amora, em tempos onde o scout aos jovens jogadores era feito na rua (risos). Foi assim que se iniciou a minha carreira em clubes como Amora, Vitória FC e Barreirense», recorda ao zerozero.
Sem nunca conseguir jogar na I Liga, o antigo defesa central acabou por passar em vários emblemas no início de carreira.
Pelo caminho, uma ligação familiar aos Países Baixos surgiu e acabou por influenciar e precoce decisão de emigrar, rara para um futebolista luso no início da década de 90.
«Tive oportunidade de estar em ambiente de I Liga no Vitória FC, mas infelizmente não joguei nenhum jogo devido a uma pubalgia grave. Assinei pelo Vitória SC mais tarde e fui imediatamente emprestado ao Benfica e Castelo Branco. Depois acabou por surgir hipótese de ir para os Países Baixos.»
«A minha companheira era neerlandesa e foi assim que começaram os contactos. Conheci-a em Portugal e já vivíamos juntos há dois anos. A ideia era mesmo fazer carreira nos Países Baixos. Sabia que tinha de ganhar nome e mostrar valor. Fiz dois jogos de teste e rapidamente assinei pelo RKC Waalwijk», explicou.
Esse momento mudou o rumo da carreira de David. As dificuldades iniciais apareceram e a resiliência foi testada, contudo, o novo país passou a ser visto como casa.
Por lá um percurso de sucesso foi construído, como comprovam os 325 encontros disputados na Eredivisie.
«Chegar lá foi um choque, admito. Os neerlandeses eram muito abertos e a educação era diferente. Custou-me lá chegar com 22 anos e ter miúdos de 17 a darem-me indicações como um comandante. Em Portugal era impensável.»
«Falavam sem filtros e tive alguns momentos em que precisei de me controlar (risos). Os treinadores eram diretos nas abordagens e não tinham problema em criticar-te na frente do grupo. Saí do meu conforto e foi uma grande experiência, pessoal e desportiva», descreveu.
«Nunca entendi o conceito de agentes que trabalham para os clubes»
Um percurso que contou com passagens por RKC Waalwijk, Roda, Utrecht, Roosendall e Sparta Roterdam. O acesso à informação era diferente e foi com surpresa que o público português recebeu a chamada do antigo defesa à seleção, por Carlos Queiroz.
«Acabei por não jogar, mas foi muito bom conviver com grandes nomes do futebol português, de Luís Figo a Oceano. Receberam-me de forma espetacular. O problema foi a qualidade dos centrais naquela altura. Fernando Couto, etc. Jogadores consagrados de FC Porto e Benfica. Não tive muita sorte (risos)», admitiu-nos, revelando também ter estado perto de jogar pelo Sporting.
«Curiosamente essa oportunidade surge também com Queiroz. Acabaram por existir umas movimentações estranhas e nunca entendi o conceito de agentes que trabalham para o clube. Tinha o meu empresário e achava que ele é que devia tratar das coisas. Acabou por não dar certo», lembrou.
Se ainda atualmente é referência, naqueles anos o futebol neerlandês era uma escola. Os comportamentos dos treinadores eram diferentes ao que estava habituado. Uma abertura que desenvolveu o gosto de David pelo treino e a aprendizagem.
«Existiam grandes diferenças. Em Portugal a interação entre treinador e jogadores ainda era reduzida. O líder falava e a equipa ouvia. Tínhamos de ouvir e fazer (risos).
«Nos Países Baixos os treinadores já estimulavam os atletas de outra forma. Obrigavam-nos a pensar o jogo, pediam feedback dos exercícios, etc. Claro, o técnico sempre com o poder de decisão, mas o plantel sentia-se num nível hierárquico mais próximo.»
«Senti nos meus 28/29 anos os treinadores tinham gosto em estimular o gosto pelo treino aos jogadores mais velhos. Torna-se fácil ganhares esse bichinho e, por essa altura, comecei logo a fazer os meus cursos. Acabei a carreira já com o UEFA A e pronto a começar nos bancos», constatou.
A vontade de ser treinador era muita e, cedo na transição para os bancos, uma especial oportunidade surgiu. Durante alguns meses, David Nascimento teve o privilégio de acompanhar de perto os trabalhos de Louis van Gaal. Uma confiança conquistada com o passar do tempo.
«Estagiei com ele durante sete meses no AZ Alkmaar. É um indivíduo peculiar. Tem um dom extraordinário. Quando lá cheguei expliquei-lhe o que procurava com esse estágio, a vontade que tinha de aprender com uma referência.
«Ele, matreiro, testou-me ao não me dar responsabilidades cedo. Quis ver horários, comportamento e empenho.»
«Eu chegava sempre a horas, seis vezes por semana. Não falou comigo durante a primeira semana, além do "olá" e o "bom dia". Eu não fazia parte dos treinos, ficava só a ver.»
«Senti uma grande mudança com o passar do tempo e praticamente tornei-me mais um adjunto. Aprendi muito com ele», salientou.
O respeito conquistado a Van Gaal
A lenda neerlandesa acabou por ser conquistada, tornando-se peça influente no caminho que o então jovem treinador português veio a percorrer. Exemplos da personalidade forte de Van Gaal, obviamente, não podiam faltar.
«Ele todos os dias é marcante (risos). Exigência máxima. Percebi isso quando estive presente na primeira reunião de equipa técnica. Ele era muito crítico e eu não me sentia nada bem a ver aquilo.»
«Porém, quando saía para o campo, defendia os treinadores e colocava-os bem alto na frente do plantel. Nenhuma hipótese dos jogadores perceberem as discussões com os adjuntos, etc. Tentei levar sempre isso comigo, sermos só uma voz fora da cabine de reuniões.»
«Lembro-me também de ele dizer: "David, quando olhas para a tua equipa em campo tens de ter algo de ti". A noção que a escolha de uma filosofia de jogo tem as suas consequências e nem sempre vai correr bem. Se queres construção de jogo desde a defesa, pode acontecer sofreres um golo por um erro nessa zona. Estás disposto a resistir com o público em cima de ti?», revelou.
Filosofia Cruyff pelo mundo
David seguiu o seu caminho e não tem tido medo da aventura. África do Sul, México, Chipre e Malta são alguns destinos já no currículo.
«Algumas dessas oportunidades surgiram por integrar a Cruyff Team. Os clubes contratavam o projeto e nós treinadores íamos para lá implementar a tão conhecida filosofia. Tivemos vários diálogos e reuniões em que Johan Cruyff nos explicou a sua forma de ver o futebol.»
«Fomos quatro treinadores para a África do Sul e oito para o México. Aquilo passou a ser nosso, podes imaginar (risos). Sinto que os mexicanos gostaram do nosso trabalho. Nós tanto integrávamos as equipas de formação como a equipa principal, onde fui adjunto.»
«Em Malta foi na estrutura das seleções, em Chipre como diretor desportivo. Era pouco usual porque eu também fazia trabalho de campo, além de recrutar jogadores. Foi complicado porque o que não falta lá é emoção.»
«Cheguei lá e falavam em implementar filosofia de jogo, trabalho a longo prazo, etc. Passados uns meses os planos foram todos por água abaixo (risos)», contou.
Novo desafio surgiu em 2021, com a estreia a comandar uma equipa feminina, ao serviço da seleção principal da Jordânia. Pelo choque cultural e os resultados conseguidos, um trabalho que muito orgulhou o técnico.
«Tinha trabalhado com o diretor desportivo da federação no México. Ele sabia que nunca tinha orientado mulheres, no entanto, apresentou-me um projeto bastante interessante: ele tratava de implementar uma forma de jogar contínua nas seleção masculinas e eu nas seleções femininas. Estar no campo e treinar todos da mesma forma.»
«Ganhámos duas taças importantes e conseguimos bons êxitos. Foi muito bonito ver a forma como as minhas jogadoras desenvolveram excelentes princípios. A Jordânia é uma referencia a nível feminino no Médio Oriente, com muito apoio do príncipe. Óbvio que o aspeto financeiro também teve o seu peso para aceitar o projeto.»
«Ia com algum receio, não nego. É preciso compreensão para te adaptares a coisas como horários de reza, etc. O futebolístico já não é assim e, se me quiseram como treinador, era para tentar melhorar. Formas de treinar e de trabalho. Na minha cabeça aquelas mulheres eram atletas, ponto final.»
«Relações um pouco diferentes, mas isso também mudas consoante a personalidade dos vários jogadores de cada plantel. Elas aceitaram-me e viram resultados, isto com trabalho duro. Fiquei feliz de ter continuado a ser o David Nascimento e não ter virado a cara a coisas que precisavam de mudar no aspeto desportivo. Sempre de forma respeitosa», salientou.
«Acredito que estou fora do radar por estar há tantos anos fora»
De regresso aos Países Baixos, o trabalho no Den Bosch está a ter bons frutos e o clube parece apontado a lutar pela subida à Eredivisie. Regressar a Portugal está sempre na mente, mas os convites têm escasseado.
«O novo desafio está a correr muito bem. Até perdemos o primeiro jogo da temporada, mas entrámos em boa onda. Sinto que os jogadores estão confortáveis no campo e vejo uma equipa a jogar como gosto.»
«Gostava de voltar [Portugal], porém, ainda não tive convites. Acredito que estou fora do radar por estar há tantos anos fora. Acho que podia aprender muito com o futebol português atual e também deixar algumas ideias novas. Há coisas semelhantes entre o futebol dos dois países», afirmou.
Desafiado a lançar o PSV-Sporting desta terça-feira, David Nascimento deixou rasgados elogios ao treinador do conjunto de Eindhoven e vai acompanhar com atenção a partida.
«Tenho muito respeito por Peter Bosz, o treinador. É um indivíduo consequente. Sempre consistente na forma como quer jogar, algo que Van Gaal também tinha. Recebeu e recebe muitas críticas por querer sempre atacar, mas é a forma de estar e jogar que o alimenta.»
«Não têm problemas em pressionar a todo o campo e fazer marcações individuais. Construção apoiada e muita chegada a zonas de finalização. Sempre assim, independentemente do adversário.»
«Tiveram saídas no verão e é normal que alguns deslizes aconteçam tão cedo na época. Adoro ver o PSV a jogar e estou ansioso para o duelo com o Sporting», perspetivou.