Eskerrik asko. Andoni Goikoetxea e Gaizka Toquero, heróis do mundo basco, despedem-se do zerozero em basco. O 'obrigado' é exclamado em incontido orgulho, marca sintática de uma região especial, da casa do Athletic Club.

O emblema rojiblanco, o leon de San Mamés, é o convidado de honra do Troféu Cinco Violinos, no sábado, em Alvalade.

Oportunidade perfeita para mergulhar na riquíssima história do galanteador de Bilbau, portador da mensagem do futebol retro, avesso a sponsors, sociedades cotadas na bolsa, parcerias público privadas e outras designações herméticas associadas ao jogo no século XXI.

qPercebes que o Athletic é o futebol que todos gostaríamos de ser. O Muniain, o De Marcos, esses tipos impunham respeito. Nos outros sítios, o plantel é completamente transformado de três em três anos, não há noção de continuidade e fidelidade. O Athletic é fidelidade
Gaizka Toquero, 206 jogos pelo Athletic
Bicampeão espanhol (1983 e 1984), o Athletic ainda celebra o fim de um jejum de 40 anos, numa narrativa cujo clímax é a recente final da Taça do Rei. Conceptual e ideológico, o Athletic ostenta o Santo Graal do segredo do sucesso, mesmo que limitado pela convicção de só ter figuras ligadas ao País Basco nas suas fileiras.

Essa filosofia desportiva é uma anomalia dentro do planeta-futebol. Num defeso em que o mercado se enche de rumores e factos consumados, de milhões e triliões, o Athletic recusa renegar as raízes e a origem da Euskal Herria, o País Basco - engloba os territórios de Biscaia, Guipúscoa, Álava, Navarra e ainda três províncias francesas (Labourd, Baixa Navarra e Zuberoa) - em cada um dos seus jogadores.

Esta regra, não formal, existe desde 1912. Nada consta nos estatutos do Athletic, mas os dirigentes percebem a herança dos antecessores e dela não se afastam um milímetro. Tudo isso sem penalizar o rendimento desportivo, pois o Athletic é um dos resistentes e totalistas no escalão maior do futebol espanhol - de braço dado com Barcelona e Real Madrid.

Papeladas e súplicas à parte, o Athletic é um emblema naturalista, emotivo e altivo, como que saído de uma qualquer balada distópica.

Existe, é real e joga em Alvalade. Sábado, 19h30, para um tira-teimas das batalhas de 1985 e 2012. Uma espécie de amor retro.

O Athletic campeão de 84: Goikoetxea é o segundo em cima a contar da esquerda @Getty /


Andoni Goikoetxea: «O Athletic é dos aficionados, dos ricos e dos pobres»

Momentos repetitivos, instantes em loop, ações que se agarram a nomes e os perseguem. Para sempre. Higuita continua a perder no drible sobre Roger Milla, Roberto Baggio ainda remata por cima da barra no Rose Bowl, Rabah Madjer encosta o calcanhar na bola de Viena até ao derradeiro suspiro.

Para Andoni Goikoetxea, o rótulo é outro, pesado. Um dos leones de 83 e 84 será «O Carniceiro de Bilbau» de geração para geração, de conversa em conversa, tudo por culpa da famosa patada a Diego Armando Maradona no mais castigado dos Barcelona-Athletic.

Goiko teve de mudar de número de telefone, depois de partir o tornozelo a Dieguito. Recebeu ameaças, refugiou-se, lidou com uma suspensão de 18 jogos - reduzida posteriormente - e... cansou-se de falar sobre o tema. No contacto com o zerozero é apenas isso que pede: «Falemos sobre outras coisas, por favor.»

Assim é. Goikoetxea, nome grande no maravilhoso Athletic dos anos 80, bicampeão espanhol, e presença corpulenta e ameaçadora nos dois jogos contra o Sporting em 1985, para a Taça UEFA.

zerozero – O senhor Goikoetxea tem 310 jogos pelo Athletic e viveu a era dourada de 82-84.

Andoni Goikoetxea –
Foram os meus melhores anos, sem dúvida. Já passaram mesmo 40 anos? Fomos bicampeões e em 84 conseguimos mesmo a «dobradinha». Algo que parece inalcançável nos dias de hoje. Mas o Athletic continua a ser forte e esta Taça do Rei este ano foi uma alegria enorme. Nada que se compare, ainda assim, aos nossos campeonatos conquistados em 1983 e 1984, as minhas duas memórias favoritas no futebol.

zz – Que detalhes guarda na memória sobre esses anos de ouro do Athletic?

AG – Pues, hombre, acima de tudo a sensação de felicidade e a certeza de ter alcançado o inalcançável. Não nos podemos esquecer que em Espanha temos competidores da grandeza do Real Madrid, do Barcelona e do Atlético Madrid. À partida, as provas parecem entregues sempre aos mesmos e o Athletic provou ser possível contrariar isso. Os anos passam e dou-me conta do mérito e da dificuldade em ter ganhado tanta coisa.

zz – Consegue comparar esses títulos dos anos 80 com a Taça do Rei de 2024?

AG – É muito difícil compará-los, porque até o futebol é um mundo diferente. Mas este troféu, quatro décadas depois, foi uma festa tremenda. Não posso relativizar essa emoção, porque havia muitos adeptos nossos que nunca tinham festejado nada igual. Ver um milhão de pessoas ao longo do rio, a aplaudir os seus heróis, nunca me deixará de comover.

Chamamos-lhe La Gabarra e é outro dos momentos que faz do Athletic tão especial. É o melhor clube do mundo pela forma como celebra e pela forma como vive a sua existência. Aqui só jogam futebolistas de origem basca, ou com ligação ao País Basco, e mesmo assim o Athletic é desportivamente competitivo. É um orgulho pertencer a esta família.

zz – Ficou surpreendido com esse milhão de pessoas nas celebrações? Foi quase uma viagem aos anos 80?

AG – Se perdemos a memória, perdemos absolutamente tudo. Ver este cenário, com pequeninos no berço até gente de 80 anos, a festejar e a chorar... o que se pode pedir mais? O Athletic aglutina e é uma das equipas mais respeitadas em todo o planeta. Sentimo-nos responsáveis por cuidar desta gente.

Andoni Goikoetxea
3 títulos oficiais

zz – O Andoni é embaixador na Fundação Athletic. É capaz de nos definir a alma e o coração do seu emblema?

AG – Ai, faltam-me as palavras... O Athletic é propriedade do aficionado. Independentemente da filiação política, das convicções sociais, o Athletic é dos ricos e dos pobres, é do povo de Biscaia [região norte no País Basco]. A Real Sociedad também é um clube importante da região basca e é respeitada por nós, mas o Athletic é o melhor do mundo.

zz – O Athletic vai jogar em Alvalade este sábado, uma ótima oportunidade para recordar a eliminatória de 1985 para a Taça UEFA.

AG – Tramaram-nos bem dessa vez (risos). Eu estava habituado a jogar contra equipas portuguesas, até nas seleções jovens, e sabia que seria um problema. Estamos a falar de equipas tecnicamente sempre fortes. Se bem me lembro, esse Sporting até tinha dois jogadores que depois vieram a jogar na Real Sociedad, o Carlos Xavier e o Oceano, certo?

zz – Certíssimo, jogaram os dois contra o Athletic nessa eliminatória.

AG – Exatamente. Vencemos 2-1 em Bilbau, mas em Lisboa espalhámo-nos ao comprido (3-0 para o Sporting). O Sporting, o FC Porto e o Benfica são sempre altamente competitivos, equipas fortíssimas, e nesses dois jogos fomos inferiores. Em Portugal há um sentido nacional em redor do futebol, é uma causa social no vosso país, e basta falar no nome de Cristiano Ronaldo.

Há quantos anos está na elite deste jogo? É um exemplo para todos os futebolistas. Tem quase 40 anos e continua a ter orgulho em defender Portugal. Identifico muito esse fervor patriótico nas equipas portuguesas.

zz – Por falar em fervor, vale a pena falar do senhor Javier Clemente. Foi o treinador que mais vezes o colocou em campo. Estamos a falar de mais de 200 jogos.

AG – Era um treinador muito carismático, na altura um jovem de 34 anos. Foi o melhor treinador que tive e foi com ele que vivi os melhores anos da minha vida futebolística. Possuía um conhecimento e um instinto raros. Estou-lhe eternamente grato, até porque foi ele que me levou para a federação espanhola.

Estive vários anos a treinar as seleções jovens quando o Javier Clemente era o nosso selecionador nacional. Foi sempre um homem polémico, de afirmações fortes. Nunca deixou nada por dizer. Se tiver de insultar um detrator, insulta-o. Ele tem o coração na boca, mas um coração bom. Sinto enorme carinho pelo Javier.

zz – A Espanha campeã da Europa teve vários bascos na equipa escolhida. Mais um motivo de festa em Bilbau?

AG –
Tenho grande respeito pelo Luís de la Fuente, antes de mais. Pela trajetória e pelas ideias. Ficámos muito felizes ao ver o Dani Vivian, o Unai Simón – para mim um dos melhores porteros do mundo – e o Nico Williams. O Nico é uma bonita revelação, há muitas equipas que o querem, mas ainda tem contrato com o Athletic. Espanha ganhou os sete jogos da competição e isso ninguém o fez antes. Foi a melhor equipa e a dona do melhor futebol. O selecionador mereceu este prestígio. Foi uma vitória indiscutível.

Toquero, a fúria em Bilbau @Getty /


Gaizka Toquero: «Passávamos horas a ouvir o Marcelo Bielsa»

Se o Athletic Club, entidade abstrata, assumisse uma forma humana, Gaizka Toquero seria o modelo escolhido. Da cabeça rapada aos pés bruscos, Toquero é o Athletic total, a fúria embrulhada com paixão, a veia platónica na relação com o golo, o romantismo a cada festejo.

Sete temporadas no San Mamés, mais de 200 jogos, golos decisivos em jogos marcantes, um sonhador e um basco de coração cheio.

Toquero é um dos meninos de Bielsa em 2012, ano do reencontro com o Sporting nas provas europeias. Admirador de El Loco, o antigo avançado fala desses tempos e da revolução de um homem viciado na palavra e no vídeo. Um conversador estimulante.

zerozero – Como se explica através de palavras o que é o Athletic Club Bilbao?

Gaizka Toquero – É um clube único. Pela filosofia, pelo tipo de adeptos, pela opção de ter apenas futebolistas ligados ao País Basco. Existe um sentimento de pertença, de ligação profunda. E, mesmo assim, porque no futebol queremos sempre ganhar, o Athletic é capaz de competir contra qualquer rival de qualquer liga do mundo.

zz – No futebol moderno não existem muito dignos representantes do futebol retro, vintage, da inocência afetiva criada nos anos 80 e 90. No Athletic ainda existe essa pureza sentimental?

GT – Existe e acredito que na Europa, já nem falo no resto do mundo, já não há muitos exemplos destes. E essa pureza obriga a que a equipa jogue um futebol descomplexado, de pressão alta e alegre. Está tudo ligado. Se temos o melhor clube do mundo em casa, para quê estar com medo dos outros? Na formação do Athletic ensina-se que o único objetivo no campo é atacar a baliza do adversário. Com ambição. Isso é passado de geração para geração. Felizmente, este ano com a conquista da Taça do Rei voltámos a mostrar que é possível ganhar títulos mantendo a essência do nosso ADN. Continuaremos a fazê-lo. Há anos que merecíamos isto.

zz – Qual o segredo para o Toquero continuar a ser um dos favoritos da afición do Athletic? Deixou o clube em 2015.

GT – Sempre senti esse carinho. Mas principalmente depois de me retirar. Parece-me que o que disse anteriormente pode ser repetido aqui: tudo tem a ver com o respeito. Nunca aceitei dar menos do que 100 por cento, porque os adeptos é que fazem os clubes e os clubes estão acima de qualquer futebolista. A minha intensidade em campo tinha a ver com isso. Tive a sorte de vestir aquele lindo emblema durante sete anos e sempre com a certeza que eu era apenas uma pequena peça e uma peça que estava de passagem.

zz – Nesses sete anos, o Toquero fez 206 jogos oficiais pelo Athletic. Há algum favorito no seu coração?

GT – Há uns quantos (risos). A minha estreia, logo para começar. Foi contra o Espanyol, em San Mamés [4 de janeiro de 2009], e recordo-me bem do que batia o peito antes de entrar. É um jogo que assinala um antes e um depois na minha carreira. Ainda nesse ano, jamais esquecerei o golo marcado ao Sevilla na meia-final da Taça do Rei, que nos deu a primeira final depois de 24 anos de espera. E, claro, essa mesma final jogada contra o Barcelona. Estivemos a ganhar 1-0, com um golo meu, mas depois o Barça teve a habilidade para dar a volta ao jogo. Nessa altura, eles tinham a melhor equipa do mundo. Julgo que esses três jogos resumem bem a minha relação com o Athletic.

Gaizka Toquero
Total
320 Jogos 17546 Minutos
45 53 0 0 2x

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zz – Em 2012, o Athletic eliminou o Sporting nas meias-finais da Liga Europa e o vosso treinador era o Marcelo Bielsa. Foi o treinador mais especial da sua carreira?

GT – O Marcelo revolucionou a nossa mentalidade. Ele convenceu-nos de que éramos capazes de ganhar a qualquer equipa. E tinha razão. Pela forma como ele detalhava a preparação dos jogos e dos treinos, pelo dom da palavra, pela maneira como nos acarinhava e como nos mostrava que acreditava em nós, só posso dizer que o Marcelo é especial.

Jogasse cinco minutos ou 90 minutos, eu sentia-me sempre motivado por ele. Quando temos um chefe que acredita em nós, julgo que damos até mais do que temos para dar. Nesse ano eliminámos o Manchester United e o Sporting na Liga Europa, isso é elucidativo. Tínhamos um futebol de ataque, de ir para cima do rival, não nos escondíamos em momento algum.

zz – Que memórias guarda dessa eliminatória versus Sporting?

GT – Foi muito dura. Qualquer uma das equipas podia ter chegado à final. O Marcelo [Bielsa] uniu o coração e a cabeça, tínhamos um futebol trabalhado, conhecíamos ao detalhe todos os movimentos dos adversários, jogador a jogador. Passávamos horas a ver vídeos e a ouvir o Marcelo a falar. Se fosse com outro treinador, se calhar não funcionava. Mas ele tornava essas sessões uma maravilhosa aula de futebol.

zz – Consegue dar-nos alguns exemplos desses pormenores do senhor Bielsa?

GT – Sim, claro. Contra o Sporting, por exemplo, ele explicou-nos por onde devíamos atacar e por onde devíamos evitá-lo fazer. Ele indicava determinado jogador, se identificasse alguma debilidade nele, e dizia-nos que o ouro estava ali. E o contrário também. Se algum adversário se destacasse, o Marcelo contava-nos a vida toda do homem (risos). Era obcecado pela perfeição.

Mas também tínhamos um equipazo, não era só um bom treinador. Basta referir que a eliminatória foi eliminada pelo grande Fernando Llorente. E ainda havia Javi Martinez, Ander Herrera, Iker Muniain, Óscar De Marcos, Andoni Iraola, Markel Susaeta, enfim, uma grande equipa e um enorme treinador.

zz – Essa qualidade foi determinante para eliminar o Sporting.

GT – Hombre, claro que sim. Lembro-me que sofremos bastante em Alvalade e, mesmo em Bilbau, eles empataram o jogo e depois tivemos de arriscar tudo. A afición levou-nos à vitória e o Llorente teve uma noite de glória. Fez o golo decisivo e ainda ofereceu outro. Essa foi uma maravilhosa noite europeia em San Mamés.

zz – Jogou também no Eibar, no Alavés e no Zaragoza. Consegue definir o que diferencia o Athletic desses outros emblemas?

GT – O sentimento, a ideologia, a pertença. Claro que há sentimento em todos os clubes, mas no Athletic a intensidade é mágica. Pela região onde está, por nunca ter sido despromovido à segunda divisão, pela quantidade enorme de jogadores da casa. Tudo isso torna diferente a experiência de jogar no Athletic. Entras num balneário e vês aquela gente com tantos anos de ligação... é impossível amar mais do que isso.

Percebes que o Athletic é o futebol que todos gostaríamos de ser. O Muniain, o De Marcos, esses tipos impunham respeito. Nos outros sítios, a verdade é que o plantel é completamente transformado de três em três anos, não há noção de continuidade e fidelidade. O Athletic é fidelidade. O que conta, no final de contas, é a relação pessoal. No balneário de Bilbau fiz amigos para a vida. E isso é criado logo nos escalões mais baixos.

zz – O Toquero era avançado, mas no Athletic vestia sempre o número ‘2’. Há alguma explicação para isso?

GT – Na verdade, a explicação é simples (risos). Eu cheguei ao Athletic em janeiro, depois de ter emprestado ao Eibar, e esse era um dos poucos números disponíveis. Bem, como fiz muitos golos e em jogos especiais, decidi que o ‘2’ me caía bem e continuei com ele. Mas nos outros clubes vesti outros números, não há nenhuma superstição.

zz – Falta saber o que faz hoje em dia o Gaizka Toquero. Continua ligado ao futebol?

GT – Sim, não aguentaria estar longe do futebol. Sou comentador na DAZN dos jogos do Athletic, algo que me dá muito prazer, e sou proprietário de uma academia de futebol em Valencia. Recebemos meninos de todos o mundo, mostrámos a metodologia do futebol espanhol. No próximo ano espero instituir um torneio de futebol internacional na minha terra natal, Vitoria-Gasteitz, e certamente receberei lá equipas de Portugal.