Sinto a responsabilidade de, “J’Agora”, recém-entrado em 2024, num País em que a haver Maioria deverá ser de Esquerda, para bênção do Povo, escolher uma máxima de Karl Marx para citação inicial desta reflexão: “Todas as revoluções têm mostrado uma coisa: que não só as pessoas, mas muitas coisas podem ser mudadas”.
Portugal caminha para eleições parlamentares em Março, o SNS rola para um novo modelo sob a batuta de uma Direcção Executiva, de um Ministro da Saúde (seja quem for), de uma Administração Central do Sistema de Saúde e de uma máquina gigantesca que não pode dispensar a orientação suprema do Ministério das Finanças.
É a Meca prometida das Unidades Locais de Saúde (ULS) a cobrir o país como bandeira da “maior reforma do SNS desde sempre”!
Não abordarei o modelo ULS em si, porquanto muito se tem falado e escrito sobre isso e não abundam, em termos oficiais e “científicos”, evidências homogéneas, coerentes e definitivas que validem para um universo nacional o modelo.
O Professor Fernando Araújo concedeu um conjunto de declarações, ideias e pistas para o seu projecto de Reforma do SNS em o “Norte médico”, nº95 (Jul – Set 2023), da Secção Regional do Norte da nossa Ordem.
Aliás, da nossa Ordem digo bem, ainda que por agora, dado que o Presidente da República vetou o diploma aprovado pela Assembleia da República para os Médicos…
Bom, mas não nos despistemos.
A promessa de um novo e melhor SNS assente sobre o modelo organizativo dos cuidados assistenciais parece inacreditável. As razões invocadas para a passagem para as ULS e os instrumentos que lhe parecem prometidos e associados poderiam, no limite, ser adoptados para os actuais modelos hospitalares assegurarem outros resultados. E nem esta perspectiva foi avaliada ou testada previamente. Ignoro igualmente se foram equacionados ou discutidos os impactos de transformação de Centros Hospitalares Universitários em ULS.
O financiamento é um exemplo. Os hospitais são financiados pela quantidade de actos prestados. As ULS já eram pagas com base numa estratificação de risco e capitação que agora será melhorada, para além da produção efectuada.
Os circuitos dos doentes crónicos são outro. A integração dos cuidados e procedimentos implica o percurso por níveis e locais de cuidados diferentes. No contexto ULS pode, eventualmente, limitá-lo. Mas como funcionará a indispensável referenciação de doentes e utentes entre ULS? E como vai ser gerido, controlado e financiado esse circuito?
E neste sentido o que há a esperar das Redes de Referenciação Inter-Hospitalar, em muitos casos até sem revisão para além do prazo estabelecido? Principalmente quando estiverem em jogo necessidades de tecnologias específicas e mais sofisticadas?
Ao nível das administrações das ULS, entendi que o número de membros executivos aumenta por comparação com os hospitais. Também compreendo que desse modo se satisfazem ou atendem as clientelas autárquicas. Mas confesso alguma surpresa ao ler que o Director Executivo antevê que a maioria dos gestores dos hospitais do SNS e ACeS irão continuar à frente das ULS! Não porque pessoalmente ponha em causa as capacidades de qualquer deles.
Mas exactamente pelo inverso, ou seja, se são tão capazes, se os problemas tinham a ver com as questões do financiamento das unidades, se os profissionais de saúde disponíveis são os que já se encontravam ligados às instituições, afinal o que vai mudar?
Ou a aposta e a confiança no sucesso da “reforma” radicarão no facto de, pese embora não ver isso referido na generalidade das conversas e dos comentários, os conselhos de administração das ULS passarem a contar com um vogal executivo designado pelo Ministério das Finanças?
E isso chegará para impedir as redundâncias, as burocracias, os investimentos indispensáveis em técnicas e equipamentos e edifícios, as apostas em equipas dedicadas que evitem as passagens dos doentes sinalizados pelas urgências gerais, a cobertura de utentes sem médico de família (ou essa é de forma engenhosa superada pela ideia peregrina de generalização de USF modelo B?), ou para promover orçamentos pluri-anuais imprescindíveis e, enfim, um esforço sério na promoção da saúde?
Não teria sido menos complexo e dispendioso alterar o edifício legislativo e regulamentar do SNS?
Veremos assim se Marx tinha alguma razão no seu pensamento…
* O autor escreve segundo o A.A.O
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