Os sistemas públicos de saúde estão descapitalizados e as necessidades de investimento, seja em estruturas seja em equipamentos, estão largamente comprometidos. Em Portugal, por maioria de razão, esgotadíssimos há muito tempo. Não vai ainda longe o escândalo chamado de “Pandora Papers”. O recurso a paraísos e soluções fiscais, que tanto ruído provocou, sem qualquer proveito que não para os que a eles recorreram, terá contudo sido contabilizado em mais de 200 biliões de dólares, por ano, de fuga a impostos nos correspondentes Estados aos quais pertenciam esses grandes milionários! Alguém disse que a desigualdade mata. E eu acrescentaria que mata cada vez mais…
Vem isto a propósito do tema das urgências hospitalares. O acesso continua por controlar, os serviços de urgência (SU) operam acima das capacidades instaladas, a procura inadequada mantém-se e os profissionais estafam-se e expõem-se ao crescendo de violência perante as dificuldades ligadas à definição das prioridades.
No SNS, esta questão é longitudinal e parece uma questão perpétua. Lembro-me de já em 2019 mais um grupo de trabalho ter sido nomeado (Despacho 696/2019 da Secretária de Estado da Saúde) e as suas propostas terem ficado por esse patamar – propostas. Soube-se então que, entre 2013 e 2019, a procura dos SU tinha aumentado mais de 5%, tendo nesse último ano batido o recorde com mais de 6.4 milhões de episódios!
As medidas avançadas pelo tal grupo de trabalho incluíam 4 níveis de intervenção:
– Equipas dedicadas com formação devida e liderança própria em paralelo com a criação da especialidade de Medicina de Urgência e Emergência;
– Terminar com o internamento no SU e reduzir a demora média do internamento;
– Assegurar a gestão pelo INEM do transporte inter-hospitalar;
– Tomar decisões e rever a gestão da procura, elevadíssima entre a não urgente, os “célebres” azuis e verdes.
Como nota em nome da verdade, esta matéria acerca do uso indevido das urgências hospitalares está longe de ser um exclusivo nacional. Os estudos internacionais estimam-na consoantes os países e o tipo de modelo organizativo público entre 10 e 60%. É comum ouvir-se dizer que os Cuidados Primários funcionam mal para o atendimento de situações agudas. Ou que os utentes não confiam nos seus centros de saúde para a resolução de casos agudos.
Recordo-me quando exercia funções na ARS do Norte de ter avaliado o comportamento, durante o Inverno e a habitual crise de gripe sazonal, do prolongamento do horário de algumas unidades até às 24 horas, designadamente as que estavam nas proximidades (algumas positivamente do outro lado da rua…) de SU.
Ainda assim foram pouquíssimos os doentes que a elas recorreram ou que aceitaram o reencaminhamento dos SU a que tinham acedido minutos antes. O que parece impôr-se é a necessidade de formular e aplicar uma estratégia baseada em esforço de informação e que possa reduzir ou inverter a supervalorização e o hospitalocentrismo.
As populações são, obviamente, sensíveis às capacidades curativas e resolutivas dos SU em detrimento da oferta assistencial dos cuidados primários. Não é perceptível e não se observa uma política de promoção continuada e coerente sobre a relação entre o grau de complexidade dos quadros clínicos e da tipologia de serviço a procurar.
Aos utentes, cansados de não terem médico de família atribuído e de estarem classificados como “utentes sem médico” – significando serem cidadãos de segunda –, fica bem exposta a falta de concentração de recursos humanos nos Cuidados Primários.
Por outro lado, não lhes escapa a falta de potencial e efectividade dos meios diagnósticos disponíveis na generalidade das unidades de entrada no SNS.
E, finalmente, como contrariar a imagem merecida de confiança e capacidade dos nossos hospitais?
*O autor escreve de acordo com o AAO
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