O que é a esclerose sistémica?
A esclerose sistémica é uma doença pouco conhecida em termos da nossa comunidade. É uma patologia crónica e multissistémica, o que significa que pode afetar vários órgãos. Tem um enorme impacto na vida do doente, a nível social, e é uma doença com elevada morbilidade e mortalidade.

Esta patologia representa um desafio para os clínicos que tratam estes doentes, porque é muito heterogénea, afetando cada pessoa de forma muito diferente. Isto, provavelmente, está relacionado com os mecanismos que levam ao aparecimento da patologia, nomeadamente porque pode afetar vários sistemas, como o imunitário e o vascular. Mas também a nível de mecanismos de fibrose, sobretudo da pele e, eventualmente, até de órgãos internos.

Cada um dos nossos doentes vai ter uma expressão diferente de acordo com cada um dos sistemas afetados, o que faz com que cada um tenha uma expressão única da doença.

A esclerodermia, tal como já referi, pode afetar também a pele. O próprio nome da doença indica: “esclero” quer dizer dura ou espessada; e “dermia” refere-se à pele. Praticamente todos os doentes com esclerose sistémica, de uma forma universal, vão ter envolvimento da pele.

A maior parte das formas da doença são progressivas, crónicas, isto é, não têm cura. Contudo, existe uma boa parte de doentes que vai estabilizar e cuja patologia pode ser controlada através da medicação.

“Praticamente todos os doentes com esclerose sistémica vão ter envolvimento da pele.”

Qual a prevalência e a incidência da esclerose sistémica?
Em Portugal, não temos dados relativos à prevalência e à incidência desta doença. No entanto, é sabido que é uma patologia rara, sendo que, na Europa, deve rondar uma incidência anual de 4 a 5 pessoas em cada mil habitantes.

A esclerose sistémica tem as suas primeiras manifestações, essencialmente, em pessoas entre os 30 e os 60 anos de idade, apesar de poder afetar qualquer faixa etária, e manifesta-se, essencialmente, em mulheres, numa razão de seis mulheres por um homem.

Quais são as causas?
Não temos propriamente uma causa conhecida. Pensa-se que poderá estar relacionada com fatores genéticos e, também, ambientais, que contribuam para uma maior predisposição da doença. Não tem propriamente um carácter familiar, isto é, não existem propriamente histórias de familiares afetados, nomeadamente em primeiro grau.

Relativamente às manifestações e aos sinais de alarme, é importante reforçar a ideia de que o sistema vascular é um dos principais afetados, logo um dos principais sinais de alarme. O mais frequentemente encontrado nesta doença é o fenómeno de Raynaud, que corresponde a um vasoespasmo, uma espécie de vasoconstrição das artérias, que pode ser desencadeada pelo frio ou pelo stress. Ou seja, há uma alteração da cor dos dedos, que ficam pálidos e, muitas vezes, depois, com a vasoconstrição, passam a azulados/arroxeados e, por fim, adquirem novamente a cor vermelha.

Esta alteração trifásica é muito sugestiva do fenómeno de Raynaud. Este pode afetar tanto mãos e pés, como outras partes do corpo: como nariz, lábios e orelhas.

Também numa fase inicial, depois do fenómeno de Raynaud, que acontece quase em 95% das pessoas, ocorrem as alterações da pele que referi anteriormente, ou seja, a pele começa a ficar espessada, endurecida e pode haver também o que chamamos de edema difuso das mãos e dos dedos. Podemos ter ainda, por exemplo, alterações musculosqueléticas, como dores nas articulações, artrite, mialgias…

Pode haver também o tal envolvimento multissistémico, porque é uma doença que afeta qualquer tipo de sistema, como a parte respiratória; provocar distúrbios gastrointestinais – refluxo, asia, problemas intestinais, entre outros -; e alterações cardíacas.

É muito importante estarmos atentos a estas manifestações e fazer o diagnóstico precoce da doença, para evitar complicações e permitir atuar eficazmente a nível de tratamento e de estratificação de risco. Há doentes que têm formas mais ligeiras e outros mais graves e, naturalmente, é preciso distinguir quais são os que estão em cada um destes grupos.

O tratamento vai ao encontro dos sintomas ou existe algo dirigido para a esclerose sistémica?
Também neste aspeto do tratamento, a esclerose sistémica é diferente das outras doenças reumáticas. Não existe um tratamento único para um determinado órgão, ou seja, muito daquilo que utilizamos para tratamento desta doença é dirigido ao tipo de manifestação de cada doente.

Geralmente, deve ser feito tratamento com imunossupressores em fases precoces da doença. Para os doentes que têm envolvimento pulmonar, existe também esta janela de oportunidade, porque é uma fase precoce da inflamação, em que os doentes estão mais suscetíveis a receber este imunomodelador.

Os doentes devem ser referenciados precocemente para centros especializados, com uma equipa multidisciplinar, com apoio de cardiologistas e de pneumologistas, de modo a reconhecer o diagnóstico e iniciar o tratamento, mais cedo possível.

Esta referenciação para centros com reumatologistas com experiência em tratar doentes com esclerose sistémica é muito importante, porque contribui para um diagnóstico precoce e estratificação do risco de progressão da doença. Além disso, oferece a estes doentes a possibilidade de integrarem estudos de investigação clínica e translacional. A investigação é essencial, de forma a podermos saber mais sobre esta doença rara.

“Os doentes devem ser referenciados precocemente para centros especializados, com uma equipa multidisciplinar”

Os médicos de família estão devidamente informados acerca dos centros para onde devem encaminhar os doentes?
Sim, os colegas estão devidamente informados. Na verdade, temos feito muito trabalho na área da Medicina Geral e Familiar. Consideramos que é uma área de grande importância, porque é a porta de entrada de muitos doentes no hospital e na Reumatologia.

Temos trabalhado muito no sentido de dar formação aos colegas de Medicina Geral e Familiar, alertando para os sinais de alarme, porque reconhecemos que são doenças raras e que, provavelmente, os nossos colegas de Medicina Geral e Familiar vão ver estes doentes muito poucas vezes.

Temos batalhado muito para dar essa formação. Explicamos como se pode fazer o diagnóstico, falamos do fenómeno de Raynaud e de todas as outras manifestações de alerta e, ainda, como e para onde referenciar estes doentes.

Em Coimbra, somos privilegiados nesse aspeto, porque já há alguns anos, pelo menos nos últimos cinco, que temos uma rede oficial de cuidados entre o hospital/Serviço de Reumatologia e os cuidados de saúde primários. Os médicos de família podem referenciar com mais rapidez, através dos contatos de email e telefónicos para o efeito.

No dia 29 de junho vamos assinalar do Dia Mundial da Esclerose Sistémica, que é uma forma de sensibilização para a doença. Organizámos um programa que se divide em duas partes. A primeira é destinada aos profissionais de saúde, nomeadamente à Medicina Geral e Familiar, cujo objetivo é sensibilizar para o diagnóstico e referenciação precoce destes doentes à consulta de esclerose sistémica.

Este tipo de formações é muito importante para estabelecermos parcerias e contatos mais estreitos com a Medicina Geral e Familiar e conseguimos aumentar a sensibilização para esta doença e o conhecimento por parte da comunidade médica.

“Temos feito muito trabalho na área da Medicina Geral e Familiar. É uma área de grande importância, porque é a porta de entrada de muitos doentes no hospital e na Reumatologia.”

Esta doença tem muito impacto na vida dos doentes a todos os níveis?
Tem, logo pelas faixas etárias que atinge. Receber o diagnóstico de uma doença crónica com elevada morbilidade e mortalidade em idade ativa tem um grande impacto a nível social e emocional, até porque é uma doença incapacitante, progressiva e debilitante. Pode resultar muitas vezes em dor e limitação funcional.

Também há outro aspeto importante da esclerose sistémica, que é a questão da insatisfação com a imagem do corpo, porque, como referi, envolve muito a pele, nomeadamente, das zonas das mãos, dos pés, dos braços e da cara. Isso leva a insatisfação, porque o doente vê a sua imagem corporal completamente transformada e, obviamente, que isso pode levar a baixa autoestima e a isolamento, o que tem um impacto negativo a nível da qualidade de vida e da satisfação global com a vida.

Trata-se de pessoas que, muitas vezes, recebem este diagnóstico numa altura em que são ativas do ponto de vista profissional, tendo grande repercussão na sua atividade laboral, uma vez que é uma doença incapacitante.

Estes doentes acabam por ter muitas complicações psicológicas, questões de sono, sofrimento psicológico, depressão, ansiedade, entre outras. São dimensões muito importantes que precisamos de ter em atenção quando acompanhamos estes doentes em consulta.

“A doença tem tem um impacto negativo a nível da qualidade de vida e da satisfação global com a vida.”

O diagnóstico precoce diminui não só o sofrimento do doente, mas também os custos diretos e indiretos com a doença…
…Exato. Alguns estudos mais recentes falam em todos os custos inerentes à esclerose sistémica, quer em termos de custos diretos, de hospitalização e de cuidados de saúde primários, mas também em termos indiretos, laborais e de baixa médica. Portanto, aqui também temos um custo anual total muito elevado, que, na Europa, segundo os dados que conheço, andam entre os 5 mil e os 31 mil euros por doente.

Portanto, a doença está associada a uma grande carga em termos económicos, principalmente, se tivermos aquelas formas mais graves, com envolvimento pulmonar e/ou cardíaco, em que os números sobem bastante.

O que é que falta para que se dê mais atenção a esta doença?
É importante continuamos a formação de sensibilização da doença, que deve ser feita, tal como esta ação do Dia Mundial da Esclerose Sistémica, junto dos profissionais de saúde. Penso que toda a comunidade médica e de profissionais de saúde deve estar envolvida: médicos de família e enfermeiros, para possibilitar melhorar o conhecimento da doença.

Por outro lado, é essencial – e no Dia Mundial da Esclerose Sistémica vamos apostar também nesse lado – envolver os doentes e a família, porque é muito importante que estejam informados acerca da doença e termos esta questão da formação e de momentos de partilha com os doentes e com as associações de doentes, que, no meu entender, ainda são poucas. Gostaríamos de aumentar o conhecimento e os núcleos responsáveis por esta doença junto das associações de doentes, que é um trabalho que tem de ser feito.

Em segundo lugar, como já disse, o reconhecimento e a referenciação precoce a centros especializados é muito importante e, em terceiro, continuar a investigar. A investigação vai desde o registo em bases de dados, porque é uma doença rara e só fazendo estudos com grande número de doentes é que conseguimos ter dados robustos.

“É importante continuamos a formação de sensibilização da doença”

Entrevista: Maria João Garcia
Texto: Sílvia Malheiro

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