O Governo apostou para este ano nas USF modelo B, uma reivindicação de há muito tempo. Mas, simultaneamente, avança com o IDE, que, entre outros, associa a remuneração a prescrição de medicamentos e a MCDT. Pode-se dizer que é um presente envenenado?

É, acima de tudo, um erro numa medida muito positiva. A aposta em USF, e em particular no modelo B, tem sido o grande objetivo da USF-AN. Desde 2005, com a reforma dos cuidados de saúde primários (CSP), estava previsto que o modelo B seria a meta, enquanto o modelo A seria apenas de transição e de amadurecimento das equipas. Mas com a Troika criaram-se quotas e, como nenhum Governo reverteu esta decisão, surgiram problemas. Temos assistido a uma asfixia da Reforma desde então e os profissionais desmotivaram-se, porque há USF à espera do modelo B há 10 ou 15 anos. A causa principal para não existir uma equipa familiar para toda a população portuguesa é precisamente a instituição destas quotas. Antes disso, conseguia-se recrutar médicos, enfermeiros de família e secretários clínicos. Na altura, até a própria especialidade de Medicina Geral e Familiar (MGF) se tornou mais atrativa. Este Governo conseguiu, de facto, acabar com as quotas, contudo com alguns constrangimentos. Foi-nos dito que a questão está no Ministério das Finanças que não aceitaria a proposta de outra forma…

A justificação é sempre a mesma: o Ministério das Finanças?

Penso que, nestes casos, as decisões em Saúde deveriam contar mais com o Ministério da Economia, porque as Finanças têm este pendor de olhar mais para os custos do que para os investimentos. Ter uma população saudável contribui para a Economia do país! Falta colocar na equação para as decisões em Saúde se existem benefícios a médio e longo prazo e não meras poupanças no curto prazo. Se isso fosse prática corrente, mesmo durante a Troika não se teria optado pelas quotas. Aliás, à época, não se acabou com as USF B, porque a Troika elogiou este modelo.

Mas estes constrangimentos atuais também não são de menor importância. Aumentou-se o vencimento base dos profissionais, mas a componente variável, que pode chegar a 40%, pode estar em causa por causa da forma como se avalia a carga de trabalho e a qualidade do mesmo. Neste momento, temos uma ‘limpeza’ das listas de utentes, podendo-se atingir os cerca de 10%. É um grande impacto! Também há alterações na forma como se contabilizam as listas, passando-se a utilizar o índice de complexidade de utentes e não somente a idade. Ainda não sabemos ao certo qual vai ser o impacto.

Outra questão é o desempenho, existindo uma mudança de filosofia. Nos incentivos institucionais – que são investidos na USF e não influenciavam o vencimento direto dos profissionais – já se contabilizava alguns dos indicadores previstos no novo decreto-lei como o dos custos dos meios complementares de diagnóstico e terapêutica (MCDT) e dos medicamentos. Contudo com a nova lei, este tipo de indicadores passou a entrar no cálculo do vencimento dos profissionais. No caso específico dos MCDT e medicamentos é preciso ter em conta questões éticas; no caso dos internamentos evitáveis e utilização das urgências hospitalares é necessário perceber que não dependem apenas do trabalho das equipas dos CSP.

Por outro lado, na avaliação do seguimento de boas práticas (como nos cuidados às pessoas com diabetes ou na Saúde Infantil), parâmetros que já anteriormente entravam para o vencimento dos profissionais, passou a contar a percentagem da população em que se cumprem os indicadores e não o número de utentes em que se consegue alcançar a meta, o que é um erro porque, assim, convém ter listas de utentes de menor dimensão, ao contrário que a tutela quer.

“Se se for ver os dados, as USF modelo B gastam menos que as modelo A e estas últimas menos do que as UCSP”

De que forma esta medida vai afetar a relação médico-doente ou a relação entre profissionais, já que, para não prejudicar o utente, se vai optar por não olhar ao número de medicamentos e MCDT, pondo em causa os incentivos?

Acredito que os profissionais vão, com certeza, tomar as decisões com base nas boas práticas clínicas. No entanto, as equipas não deveriam ser colocadas perante este dilema ético [MCDT e medicamentos].

O Governo está a impor um ónus demasiado grande sobre as equipas dos CSP?

Pensamos que não era necessário haver este tipo de medidas, porque tem bastado o enquadramento organizacional (B) e a estratégia ligada aos incentivos institucionais. Se se for ver os dados, as USF modelo B gastam menos que as modelo A e estas últimas menos do que as UCSP. Esperemos que o próximo Governo altere esta medida que não é necessária para que haja racionalização de custos.

Fala-se também do impacto que pode ter nesta avaliação a dificuldade atual que se sente em se ter prestadores convencionados para ecografia no caso das grávidas e nas espirometrias. Qual a realidade concreta?

São exames que terão algum peso na avaliação e, na prática clínica, temos sentido dificuldades, sobretudo nalgumas regiões, para se ter acesso a prestadores convencionados para se realizarem ecografias obstétricas, espirometrias, mas também outros exames como ecografia abdominal ou uma tomografia axial computorizada (TAC). A razão muito provavelmente está no que se paga por esses exames. É aqui que os serviços hospitalares públicos poderiam entrar e melhorar esta disponibilidade.

Os CSP no público têm atingido muito bons resultados, por isso não faz sentido desorganizar o sistema com a criação das USF modelo C”

Numa reação ao decreto-lei, a USF-AN critica o facto de nem sequer haver o BI atualizado para se conseguir uma avaliação de indicadores fidedigna. Porque é que isto acontece?

Na prática, ainda não se consegue ter todos os indicadores para se monitorizar a atividade. De facto, os sistemas de informação não estão a facilitar e a sua melhoria não tem sido uma prioridade. Ter um sistema de informação que nos ajude nas decisões é fundamental, ajudando-nos a ter um panorama do nosso desempenho, em comparação com o que acontece a nível regional e nacional,. Isso permitir-nos-ia fazer benchmarking para se encontrarem as melhores estratégias de ação. Além disso, é preciso ter um apoio estruturado, dentro das instituições, para que se possa melhorar o que não está tão bem ou otimizar ainda mais aquilo em que temos sucesso. O BI-CSP foi idealizado e construído pela USF-AN e, depois, doado ao SNS. Nos últimos tempos também se lançou o e-Qualidade que, primeiramente foi criado para o processo de novas USF, mas que pode também ser um apoio na monitorização para a melhoria do desempenho das unidades.

Ainda neste âmbito dos indicadores, existe a questão da administração da vacina da gripe que passa a ser partilhada com as farmácias. Como resolver esta questão?

Esta é mais uma área que passou a estar fora da nossa alçada, ou seja, até ao ano passado eram os CSP que geriam todo o processo e, o que é certo, é que durante vários anos conseguimos cumprir as metas da Organização Mundial de Saúde (OMS). No ano passado, apenas dois países o conseguiram, Portugal foi um deles. Este ano alterou-se a estratégia e passou-se a gestão e a própria administração das vacinas para as farmácias comunitárias. A meio de novembro, estávamos muito aquém do atingido em 2022. A partir de então, a Direção Executiva do SNS pediu aos CSP que se envolvessem e já se conseguiu aumentar o número de pessoas vacinadas. Todavia, os problemas permanecem, continua a não haver vacinas disponíveis em número suficiente nos centros de saúde e vai-se mudando a estratégia sem informar previamente ou preparar os serviços: estava-se a planear a atividade para um grupo etário e amplia-se o alvo – nada contra -, mas não se teve em conta essa opção no número de vacinas solicitadas. Estamos já a aproximar-nos da meta da OMS, mas perdeu-se mês e meio e entrámos em plena época gripal com todos os problemas a que assistimos nos serviços de urgência. Se estava a correr bem, porque se mudou?

O Governo justifica a medida por haver mais farmácias comunitárias do que unidades de CSP. De facto, existem mais farmácias.

Esta afirmação [do Governo] revela um grande desconhecimento do que é o terreno. Na realidade passou-se de 9 mil “postos de vacinação” para as 2500 farmácias. Nos CSP estão 9 mil enfermeiros que conhecem muito bem a população que servem e esta proximidade e atendimento personalizado faz a diferença. E voltou a fazer quando fomos chamados a meio de novembro para mobilizar a população.

“Fala-se também muito da integração de cuidados, contudo, o modelo ULS já tem quase 20 anos e ainda não se conseguiu de todo esse objetivo. É preciso algo mais.”

Iniciamos o ano com mais ULS. Como é que a USF-AN vê este modelo de organização de cuidados?

Quando se fez a Reforma dos CSP, em 2005, havia duas medidas estruturantes: generalização das USF e a implementação de agrupamentos de centros de saúde (ACeS) com múltiplas outras tipologias de unidades funcionais e profissões da saúde e, fundamental, autonomia. Esta última nunca foi possível. Na prática propunha-se que os ACeS tivessem autonomia como os hospitais para contratar e gerir profissionais de saúde, serviços e material. Isso nunca avançou, acabando por ficarem as administrações regionais de saúde (ARS) com a gestão das unidades funcionais e ACeS. Mas com as ULS preferiu-se que esta gestão ficasse sob a mesma administração do que o hospital.

Fala-se também muito da integração de cuidados, contudo, o modelo ULS já tem quase 20 anos e ainda não se conseguiu de todo esse objetivo. É preciso algo mais. Não acredito que vá haver mais interligação de cuidados. O grande problema atual das ULS é que não há praticamente nada escrito. A USF-AN não vê, para já, vantagens neste modelo, mas, estando operacionais, vamos fazer tudo para que corra bem. Da nossa parte podem esperar cooperação, mas também espírito crítico. Vamos também ajudar os profissionais com partilha de problemas e de soluções e com formações.

Na reforma dos CSP falava-se das USF modelo C. Ainda faz sentido?

O que tem provas dadas é o modelo B. Existe uma grande opacidade em relação ao privado, contrariamente ao setor público. É preciso haver transparência em termos da qualidade dos cuidados no privado para que se possa canalizar dinheiro. Os CSP no público têm atingido muito bons resultados, por isso não faz sentido desorganizar o sistema com a criação das USF modelo C.

Esta aposta nas USF modelo B poderá atrair novamente os profissionais para o SNS, já que muitos nem sequer querem fazer a especialidade, nomeadamente em MGF?

Estamos numa fase em que é preciso ver para crer. As pessoas já não acreditam em promessas. Se as coisas correrem bem, vamos recuperar a capacidade de atração. Vamos ver como serão os próximos tempos.

“Tem que se resolver de uma vez por todas a questão da especialidade de Enfermagem de Saúde Familiar, agilizando-se o seu acesso (atualmente completamente dissuasor) e abrir-se concursos de ingresso na categoria de especialista. No caso do secretário clínico é preciso publicar o seu perfil”

Falando de outros grupos profissionais, o que defendem para o enfermeiro de família e para o secretário clínico?

Tem que se resolver de uma vez por todas a questão da especialidade de Enfermagem de Saúde Familiar, agilizando-se o seu acesso (atualmente completamente dissuasor) e abrir-se concursos de ingresso na categoria de especialista. No caso do secretário clínico é preciso publicar o seu perfil de competências e funções, já proposta pela USF-AN, e a criação de uma estrutura formativa para o efeito para que esta função seja mais atrativa e para que possam, inclusive, vir a ter uma carreira. Para ambos, é fundamental também que vejam os seus vencimentos atualizados, tal como aconteceu com os médicos. Esta diferença está a criar constrangimentos nas equipas e acaba por ser quase um ultraje para estes profissionais que têm um papel tão importante nas equipas de saúde familiar.

Vamos ter eleições legislativas. Que mensagem gostaria de deixar aos diferentes partidos?

Principalmente, não ponham em causa o que já foi construído ao longo dos anos e apostem no serviço público. Os CSP são o pilar do sistema de saúde e, em particular, do SNS. As soluções de proximidade são as que podem, realmente, resolver a maioria dos problemas do setor. A generalização das USF modelo B é a medida que, de um modo equitativo, poderá resolver mais constrangimentos como o acesso a cuidados na doença aguda, na doença crónica, no apoio domiciliário, na prevenção da doença …. Devem assim lutar para que se mantenha a aposta no modelo B, mas melhorando o modo de remunerar a carga de trabalho e a qualidade deste. E, obviamente, facilitar o acesso à especialidade de Enfermagem de Saúde Familiar e avançar com concursos para esta especialidade, assim como publicar o perfil de competências e funções dos secretários clínicos como caminho para criação de uma carreira. Apostar, portanto, no trabalho em equipa e nas condições de trabalho de toda a equipa. Fundamental é também eliminar burocracia desnecessária e melhorar a organização do SNS, o apoio administrativo, os sistemas de informação e os vencimentos. Os centros de saúde têm de funcionar em condições otimizadas para dar resposta às necessidades da população.

Maria João Garcia

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