A obesidade é uma doença crónica e um fator de risco para muitas outras doenças, como sejam as cardiovasculares. Como avalia o seu seguimento e tratamento em Portugal?
Efetivamente, a obesidade é uma doença crónica, mas também complexa e multifatorial, que não se traduz apenas em excesso de peso ou em índice de massa corporal aumentado, mas sim em um depósito anormal e excessivo de gordura no corpo, denominado adiposidade. Ou seja, mais do que falar em obesidade, deveríamos falar em adiposidade.
Infelizmente, em Portugal, e em outros países do mundo, não se olha para a obesidade como uma doença, nem para a sua complexidade: não se respeita, não se previne, não se diagnostica e não se trata. A obesidade é uma das patologias mais prevalentes, mas é das menos diagnosticadas e tratadas em Portugal (e talvez no mundo…).
Ainda há o estigma, o mito e a postura de que a obesidade não é doença, tanto por parte da sociedade civil, como dos profissionais de saúde. É muito importante mudar este paradigma, porque só assim vamos conseguir mudar o estigma e a culpabilização que as pessoas sentem por serem obesas.
“A obesidade é uma das patologias mais prevalentes, mas é das menos diagnosticadas e tratadas em Portugal (e talvez no mundo…)”
É curioso perceber que uma percentagem muito significativa das pessoas que vivem com obesidade a considera um problema exclusivamente seu. Ou seja, cerca de 80% das pessoas que vive com obesidade acredita que perder peso é uma responsabilidade inteiramente sua e, eventualmente, uma percentagem ainda maior sente culpa por ter esta doença. É preciso mudar mentalidades.
Até porque, além das questões estéticas de que muito se fala quando se trata de obesidade, esta doença é fator de risco para outras patologias graves, trazendo muitos problemas de saúde…
… É esse mesmo o problema! Confunde-se a obesidade com quilos a mais e com problemas estéticos… Só de beleza. Mas, não é disto que se trata. Quando nos referimos a obesidade falamos de adiposidade e de uma doença muito complexa, que se não limita a uma simples equação entre o que se come e o que se gasta.
Nunca devemos dizer às pessoas que vivem com obesidade para fecharem a boca e fazerem mais exercício. Porque não passa por uma equação matemática simples entre o que comemos e o que gastamos, existem muitos fatores genéticos, epigenéticos, ambientais, neurológicos e neuro-hormonais que fazem com que uma pessoa venha a desenvolver esta patologia e outra pessoa não. A obesidade é uma doença tão crónica como a asma, a artrite reumatoide, a diabetes ou qualquer outra.
O mesmo se passa com o tratamento. Quando temos um doente com hipertensão arterial, com diabetes ou com asma controlada não lhe dizemos para parar a medicação, porque sabemos que a sua doença vai agravar. É igual com a obesidade, que, por ser crónica, exige tratamento crónico. Quando a terapêutica for interrompida, a doença volta a aparecer. Existem muitos mitos e estigmas que precisamos de mudar.
Mas, como referiu, o problema da obesidade é que, além de ser por si só uma doença, também aumenta significativamente o risco de muitas outras. Dito de outra forma, prevenindo e tratando a obesidade conseguimos tratar e evitar muitas outras doenças.
“Confunde-se a obesidade com quilos a mais e com problemas estéticos… Só de beleza. Mas, não é disto que se trata”
Mas isto não é feito?
Não! É o velho paradigma do tratamento da obesidade… que não existe! Não se trata a obesidade em Portugal, mas trata-se o prejuízo! Ou seja, tratamos as complicações da obesidade: a diabetes, a hipertensão arterial, a dislipidemia…
Se nos focássemos, verdadeiramente, na génese do problema, que é a obesidade, não precisávamos de estar a tratar as complicações, porque sabemos que a obesidade aumenta o risco de muitas doenças: diabetes, HTA, enfarte agudo do miocárdio, acidente vascular cerebral (AVC), tromboses cerebrais…
Mas, além das doenças cardiovasculares, esta patologia é também fator de risco para a demência, problemas osteoarticulares, apneia obstrutiva do sono, entre outras. Sabe-se, até, que está associada e que aumenta a prevalência de muitos tipos de cancro.
Por outro lado, também é preciso lembrar que é muito raro encontrarmos alguma doença que não seja mais prevalente ou que o seu curso clínico não seja mais grave num doente obeso. A covid-19 mostra-nos isso de forma muito clara. As pessoas com obesidade, que se infetaram com SARS-CoV-2, pelo menos nas primeiras vagas, tiveram um prognóstico muito mais desfavorável e uma gravidade muito maior da doença. Este é o grande exemplo de que toda a gente fala. Mas, a verdade é que rara é a doença que não seja mais grave numa pessoa com obesidade.
“Não se trata a obesidade em Portugal, mas trata-se o prejuízo! Ou seja, tratamos as complicações: diabetes, hipertensão arterial, dislipidemia…”
Qual a prevalência da obesidade e do excesso de peso em Portugal?
Não temos dados absolutamente verídicos e concretos, porque não existe nenhum estudo recente. A nível mundial são mais de 650 milhões de pessoas. A nível nacional estima-se que mais de 2 milhões de pessoas vivam já com obesidade. Também se estima que mais de metade da população tenha excesso de peso ou obesidade. Estamos a falar de uma verdadeira pandemia e não se prevê que haja qualquer tipo de diminuição.
Pelo contrário, estes números vão aumentar muito rapidamente e, em 2035, serão ainda muito mais assustadores.
É também de lembrar que excesso de peso e obesidade são situações diferentes, mas precursoras. Alguém com excesso de peso vai acabar por desenvolver obesidade e, muito provavelmente, alguém com obesidade vai desenvolver diabetes mellitus tipo 2, HTA, dislipidemia, problemas cardiovasculares…
São espectros de desenvolvimento da mesma doença num contínuo dismetabólico, uma vez que a génese é a adiposidade, que vai gerar todas as patologias.
“A nível nacional estima-se que mais de 2 milhões de pessoas vivam já com obesidade”
Não havendo estudos, é possível saber quem é mais afetado pela doença?
Sabe-se que a obesidade infantil também está a aumentar, o que é preocupante, uma vez que, ao ter início logo em idade pediátrica, o problema terá uma dimensão ainda maior em idade adulta.
Por outro lado, e além da dimensão clínica e de todas estas repercussões que referi, a obesidade tem uma dimensão económica e social muito grande, estando associada aos estratos sociais e culturais mais desfavorecidos.
No atual contexto económico nacional e internacional, com a inflação a disparar, assim como o desemprego e o agravamento das condições de vida, este é um grande problema!
A doença começa a atingir contornos de um flagelo social. A prevalência é maior nestes estratos e, sobretudo, em idade pediátrica. É aqui que nos devemos focar, porque estas pessoas têm um risco aumentado.
“A doença começa a atingir contornos de um flagelo social”
O que deve ser feito para prevenir que mais crianças e adultos destes estratos sociais venham a ter obesidade?
Mais do que um problema de saúde pública, a obesidade é um problema prioritário de saúde pública. Para combater uma doença com estas dimensões são necessárias estratégias de prevenção muito eficazes.
Mas, não são suficientes, precisamos também de estratégias de tratamento e de abordagens combinadas, completas e sinérgicas que impliquem intervenções individuais, mas também mudanças sociais e políticas.
Qualquer medida, para ser bem implementada, deve envolver os profissionais de saúde, mas também a sociedade civil e, claro, os decisores políticos.
Em que deveriam consistir essas medidas?
Para se fazer uma abordagem correta da obesidade é preciso focarmo-nos em dois pilares: a prevenção e o tratamento. Não podemos negligenciar nenhum destes aspetos e estamos a fazê-lo. Não estamos a prevenir, nem a tratar.
O primeiro passo é reconhecê-la como doença e saber diagnosticá-la, para, depois, a tratar. O tratamento envolve três pilares fundamentais: alteração do estilo de vida, que passa por um perfil alimentar correto e pela prática de exercício físico – muito importantes também no que respeita à prevenção. São fundamentais e sem eles não se pode avançar para nenhum outro pilar, ou seja, as estratégias de tratamento terão de ser complementares e sinérgicas.
Depois temos a abordagem farmacológica, que é eficaz e apresenta bons resultados, com grande impacto na vida dos doentes. Este tratamento tem influência direta, não só na qualidade de vida, como no prognóstico e na redução das complicações, nomeadamente das cardiovasculares, que são as que levam à mortalidade.
Do ponto de vista cirúrgico, já temos muitas técnicas para tratar a obesidade. Este tratamento cirúrgico é comparticipado pelo Serviço Nacional de Saúde (SNS) e existe uma longa lista de espera, mas tem vindo a ser feito.
Outra questão curiosa é que existem fármacos muito eficazes, alguns já temos em Portugal, outros estão na iminência de chegar, com resultados muitíssimo satisfatórios no que respeita à perda de peso, mas também a outros outcomes.
Contudo, o grande problema é que não são comparticipados. Isto é quase contraditório, o SNS comparticipa uma cirurgia bariátrica – que só tem critérios quando se atinge determinado índice de massa corporal, associado a comorbilidades -, mas a terapêutica farmacológica para o tratamento de obesidade não é comparticipada!
“É preciso focarmo-nos em dois pilares: a prevenção e o tratamento”
E isto é uma luta que tem de existir. É um caminho que tem de ser feito, juntamente com os decisores políticos e com os profissionais de saúde.
Enquanto não houver uma profunda mudança de paradigma no que respeita à obesidade e enquanto, todos em conjunto – profissionais de saúde, sociedade civil e decisores políticos -, não a encararmos como uma doença, não vale a pena estar a fazer “futurismo”. Os médicos têm de diagnosticar a doença e tratá-la. E tem de haver equidade no acesso a este tratamento. As pessoas com obesidade têm uma doença crónica e devem ter acesso ao seu tratamento financiado pelo SNS, tal como uma pessoa com diabetes ou com asma.
O facto de os medicamentos não serem comparticipados faz com que o acesso seja muito limitado e esteja vedado aos sectores desfavorecidos da sociedade, que têm uma maior incidência da patologia. Isto faz perpetuar o problema.
Texto: Sílvia Malheiro
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