Dei por bem empregue o sábado que passei no 26.º Congresso Nacional da Ordem dos Médicos. Sob o tema genérico das Carreiras Médicas, registei o clamor geral do quanto elas são fundamentais e a urgência de as ressuscitar no setor público e no privado para garantir a motivação dos médicos, alicerçada na sua progressão contínua. As grandes empresas valorizam o bem-estar dos profissionais, porque sabem que isso melhora os resultados. A saúde não é diferente. Um médico feliz trata melhor o seu doente e está mais defendido do burnout.

Gostei de assistir a uma mesa-redonda em que os três preletores médicos foram convidados a desfiarem as razões que os levaram a abandonar o SNS, ficando com atividade integral num hospital privado. Um era especialista em Anatomia Patológica e tinha sido diretor de serviço num hospital central durante mais de 30 anos. Outro, uns 10 anos mais novo, era especialista de Cirurgia Plástica. O terceiro era especialista de Medicina Interna, grande entusiasta da Hospitalização Domiciliária, tendo conseguido implantá-la num hospital privado.

Achei muito curioso e relevante que os três estavam de acordo em duas coisas:

– A remuneração muito superior auferida no hospital privado era importante, mas não tinha sido determinante para a saída do SNS;

– Voltariam de bom grado para o SNS, se as condições do exercício da atividade médica se modificassem.

É preciso reconhecer que foram sendo acumulados vícios organizacionais nas instituições de saúde que subjugam o médico a uma lógica de métricas, em que apenas interessa a produção. O administrador é omnipresente, esmifra o tempo das consultas, dos exames e das cirurgias. As reuniões clínicas e as discussões dos doentes entre pares são uma perda de tempo. A qualidade dos cuidados pouco interessa quando não se avaliam resultados. O que interessa é fazer sempre mais, sem nos importarmos como o conseguimos.

Aceitam-se contratos de especialistas a 10h ou a 20h que vão ali fazer a sua tarefa, sem terem qualquer ligação com o serviço. No caso dos meios complementares de diagnóstico, a tendência é contratar no exterior pelo menor preço. A figura do diretor de serviço perdeu toda a autoridade. Os enfermeiros e auxiliares de ação médica têm hierarquias próprias, que não podem ser beliscadas.

Poucos são os médicos contratados com alguma intervenção do diretor de serviço, há grandes variações dos regimes e horários de trabalho, muitas decisões de mobilidade são tomadas pelo conselho de administração sem o consultar. O desrespeito pelo diretor de serviço corrói a hierarquia necessária ao funcionamento do serviço, que se acentua ainda mais com a total ausência de instrumentos que lhe permitam premiar quem se distingue e teima em querer fazer melhor. Depois, o desgraçado diretor de serviço entra em depressão com cada novo plano de atividades, que entrega diligente ao conselho de administração. Fica a pensar que ninguém o lê. Pelo menos, ninguém o chama para lhe explicarem as opções tomadas ou calendarizar as suas propostas. Grassa o imobilismo e o que muda cheira a decisão avulsa, sem estratégia.

A renovação das instalações nos serviços públicos não tem merecido a preocupação dos governantes. Ainda permanece nas mentes de alguns que as más condições estruturais são esquecidas perante a excelência dos cuidados assistenciais. É uma mentira descarada.

Com piores instalações, o doente corre maiores riscos de infeção e quedas, para além de que um ambiente agradável motiva toda a equipa de saúde e favorece o resultado final. A avaliação do grau de satisfação dos doentes e profissionais deveria fazer parte da certificação dos serviços e dos hospitais.

O outro aspeto que leva os médicos a decidirem sair do SNS é o serviço de urgência. Se não forem tomadas medidas eficazes para reduzir o afluxo de doentes às urgências dos hospitais não será estancada a sangria. Desde há 30 anos que a política de aumentar o espaço físico dos serviços de urgência, o número de médicos tarefeiros e as horas extraordinárias dos médicos do hospital mostra ser desastrosa. É preciso tomar medidas a curto prazo e outras de efeito mais tardio, mas no sentido correto.

Enquanto estamos assim há que comprometer todas as especialidades na resposta à urgência, porque é um problema do hospital e não da Medicina Interna. Depois há que dotar todos os portugueses de Médico de Família, de forma que o doente agudo de gravidade ligeira a moderada possa ser observado no centro de saúde, em vez do recurso imediato ao hospital. É assim em toda a Europa e nenhum dos países pensou que essa observação médica pudesse ser substituída por uma linha telefónica! Julgo que esta boa prática deveria ir sendo implementada nas regiões em que a cobertura por Médicos de Família já existe, dadas as assimetrias do país.

O SNS continua a ter motivos de atração para quem não faça do dinheiro o seu objetivo da vida. A privada pagará sempre mais, até poder pagar menos, se o mercado mudar. Mas no SNS o médico tem os doentes complexos e mais graves, com um número capaz de lhe abrir a porta da investigação e do ensino numa realização profissional completa. Acredito que haja quem não saia do SNS, ou volte para ele, desde que a diferença salarial não seja tão gritante, e haja quem consiga inverter o caminho de degradação dos Serviços que temos percorrido.

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