Estas são as Jornadas mais antigas que juntam a Cardiologia e Medicina Geral e Familiar (MGF). Ao fim de quase 40 anos, que avaliação faz da articulação entre ambas as especialidades?
As pioneiras Jornadas de Cardiologia, HTA e Diabetes de Almada conhecem este ano, entre os dias 11 e 13 de janeiro, a sua 38.ª edição. Trata-se da primeira iniciativa organizada, em Portugal, entre a Cardiologia e a Medicina Geral e Familiar e tiveram logo, desde início, grande aceitação. Sublinho que não se trata de uma iniciativa organizada para médicos de família, mas sim em conjunto por ambas as especialidades. Recordo que, na altura, se tratou de uma decisão local, com o intuito de melhorar as relações de trabalho e de comunicação entre os médicos da Clínica Geral e os da área hospitalar. Com o seu sucesso, acabou por se transformar numa reunião de dimensão nacional.
Havia uma grande separação e, até, um certo desconhecimento entre estas duas áreas da Medicina, particularmente da parte dos médicos hospitalares. As Jornadas foram um reconhecimento, da nossa parte, de que a MGF tem um papel fundamental e é, no fundo, o grande pilar em que assenta o Serviço Nacional de Saúde, sendo imprescindível que haja uma boa comunicação entre os médicos de ambas as especialidades. Estes profissionais são a espinha dorsal da assistência médica e sem eles nada de válido se conseguirá fazer. Só com o seu apoio será possível fazer uma boa Medicina e prestarmos um bom serviço aos nossos doentes.
Os atuais objetivos destas Jornadas continuam a ser exatamente os mesmos pelos quais toda a sua comissão organizadora, em que os médicos de família têm um papel fundamental, se pautaram há 38 anos para organizar a primeira edição: rever todas as inovações científicas ocorridas no ano anterior.
Destaco que nestas jornadas contamos com a presença de colegas e amigos que nos acompanham há muito tempo. Exemplo disso é o Dr. João Sequeira Carlos, que começou por vir ao evento com a sua mãe (Regina Sequeira Carlos), ainda como aluno de Medicina! Desde então, além de especialista, já foi inclusive presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar (APMGF). Um dos fundadores destas jornadas, o Dr. Mário Moura, um visionário da Medicina, teve um papel fundamental na criação da especialidade de MGF, foi presidente da APMGF, sendo atualmente presidente de Honra. Merece toda a nossa admiração e respeito e é um orgulho saber que estas jornadas foram criadas, desde o primeiro dia, com o seu contributo. Aliás, em sua homenagem, temos todos os anos o Prémio Mário Moura, atribuído à melhor comunicação oral e/ou melhor poster. Esta ligação ao passado é essencial.
A atual crise do SNS, com escassez de recursos humanos e as incertezas quanto à generalização do modelo Unidade Local de Saúde poderá pôr em causa essa mesma articulação?
Este novo modelo tenta aperfeiçoar de forma integrada a articulação entre os hospitais e a medicina de ambulatório, tendo também subjacente o objetivo de melhorar o controlo dos custos financeiros. Paralelamente, o SNS tem um problema básico na qualidade da sua gestão, que precisa de ser modernizada. Necessita também de um maior contributo dos médicos, que se tem perdido nos últimos anos, para assegurar que, para bem dos doentes, as regras da Medicina sejam respeitadas e não subvertidas pelas regras da gestão.
“A hipertensão arterial é a mais importante causa evitável de morte. Afeta cerca de 30% da população mundial e contribui para quase 11 milhões de mortes anualmente”
Relativamente às Jornadas, a hipertensão e a diabetes continuam a ser fatores de risco relevantes para doença cardiovascular. Ao longo destes 38 anos, que desenvolvimentos gostaria de destacar no que diz respeito ao diagnóstico e tratamento de ambas as patologias?
A hipertensão arterial é a mais importante causa evitável de morte. Afeta cerca de 30% da população mundial e contribui para quase 11 milhões de mortes anualmente, o que equivale a 30 mil mortes por dia (em consequência da hipertensão arterial). Hoje dispomos para tratar de três pilares. Em primeiro lugar, as mudanças de estilo de vida, em segundo lugar a terapêutica farmacológica e em terceiro lugar a desnervação renal. Nos últimos anos, surgiram novos recursos terapêuticos, como os iSGLT2 e os mineralocorticoides não esteroides. (finenerona) que podem contribuir para melhorar o controlo e prognóstico de alguns destes doentes.
A diabetes é reconhecida há muitos anos como um importante fator de risco cardiovascular. Até recentemente o modelo utilizado era essencialmente glucocêntrico, com resultados muito limitados na redução dos eventos macrovasculares. Diversos ensaios clínicos demonstraram recentemente que os inibidores da SGLT- 2 e os agonistas GLP-1 têm um efeito muito positivo, quer na redução dos eventos cardiovasculares quer das complicações renais, as duas principais causas de morte destes doentes. Hoje há um consenso Europeu- Americano que diferencia estes dois grupos de fármacos. Os inibidores SGLT-2 devem ser usados, preferencialmente, na insuficiência cardíaca (sem ou com diabetes) e na insuficiência renal, enquanto os GLP-1 devem ser empregues quando predomina a doença aterosclerótica, independentemente dos níveis glicémicos.
“Não basta tomar os comprimidos. Não existe uma terapêutica que seja melhor que a adoção de um estilo de vida saudável”
As terapêuticas são cada vez mais simples e individualizadas. Isso tem sido decisivo para doentes mais resistentes em seguir o tratamento?
Daí que seja fundamental esta interligação entre Cardiologia e MGF, porque, hoje em dia, são os médicos de família que controlam a maioria dos casos de hipertensão e diabetes, tendo a competência para o fazer. São patologias frequentes que acabam por ter de ser tratadas na proximidade, ficando somente uma pequena percentagem de casos mais complexos para os cuidados dos especialistas hospitalares. Os especialistas de MGF dominam perfeitamente os problemas de hipertensão e diabetes, tendo ainda um papel fundamental na prevenção, por estarem mais próximos da população e por terem uma visão mais global da sua saúde. Por isso mesmo debatemos todos os anos casos clínicos, onde domina a visão do MGF. Saliento, os médicos de família têm um papel fundamental na prevenção e tratamento dos fatores de risco de doença cardiovascular. Nestas Jornadas participam tal como os especialistas hospitalares na organização e nas conferências, promovendo-se assim a atualização de conhecimentos e partilha de experiências. O mais beneficiado é, sem dúvida, o doente.
Mesmo assim, com novas terapêuticas, qual o papel dos hábitos de vida saudável?
Não basta tomar os comprimidos. Não existe uma terapêutica que seja melhor que a adoção de um estilo de vida saudável. O que é determinante na esperança média de vida é ter-se uma vida equilibrada, com exercício e atividade física regular, alimentação mediterrânica, pobre em açúcar e sal, dormir as horas necessárias, não fumar…Nestes quase 40 anos temos assistido a grandes avanços terapêuticos – e ainda bem, porque permitem evitar muitas mortes -, mas o objetivo médico é curar e/ou controlar a doença, associando sempre a terapêutica a uma vida com hábitos saudáveis.
Os idosos continuam a ser a população mais vulnerável ao risco cardiovascular, não apenas pela idade mas também pela elevada prevalência de hipertensão e diabetes. Acredita que as novas gerações vão ser diferentes?
É reconhecido que uma das grandes conquistas do século XX foi o aumento da esperança de vida que, em Portugal, nos últimos 80 anos, cresceu cerca de dois a três anos por cada década. Hoje é expectável que um homem ou mulher de 70 anos viva, em média, cerca de mais duas décadas, que devem ser disfrutadas com vitalidade e dignidade. Estamos perante uma conquista incrível, em que nem tudo é positivo. Do nosso sucesso resultou também uma epidemia de doenças crónicas associadas ao envelhecimento. Esta população com idade mais avançada traz novos desafios, resultantes da elevada prevalência de doenças geriátricas, embora muitas delas sejam em grande parte evitáveis e controláveis. No que respeita à esperança de vida com boa saúde, a comparação de Portugal com os restantes países da União Europeia é dececionante, o que significa que pode e deve ser melhorada. Viver mais tempo em boa saúde é hoje possível, atrasando o ritmo da perda das capacidades funcionais e de desenvolvimento de muitas doenças. Ter saúde e sentir-se jovem e com energia depende mais do estilo de vida que dos cuidados médicos, por melhores e mais especializados que estes sejam. No entanto, lembro que é errado, mesmo não ético, recusar a uma pessoa idosa um tratamento por motivos de custos elevados, desde que estejam comprovados os seus benefícios e segurança. Prescrição racional não é o mesmo que prescrição racionada.
“O prognóstico da insuficiência cardíaca é sombrio, na medida em que somente cerca de metade dos doentes estão vivos em cinco anos após o diagnóstico. Felizmente, o prognóstico tem melhorado muito, nos últimos anos”
Vai decorrer no sábado um minicurso sobre Insuficiência Cardíaca. Este é e será um dos grandes flagelos dos próximos anos face ao aumento da esperança de vida?
A insuficiência cardíaca afeta um elevado número de portugueses e é uma patologia cardíaca em franco aumento. Já é hoje a principal causa de internamento hospitalar dos indivíduos com mais de 65 anos. Os principais motivos que estão a levar a este aumento são o envelhecimento da população, com as suas doenças associadas, como a hipertensão arterial e a epidemia de obesidade, que afeta negativamente todos os outros fatores de risco cardiovascular. O prognóstico da insuficiência cardíaca é sombrio, na medida em que somente cerca de metade dos doentes estão vivos em cinco anos após o diagnóstico. Felizmente, o prognóstico tem melhorado muito, nos últimos anos, graças aos recentes e enormes progressos no tratamento farmacológico e ao desenvolvimento de novos dispositivos médicos.
Para terminar, que dicas gostaria de deixar aos colegas médicos para que também eles, no meio da azáfama da prática clínica, pensem na sua saúde cardiovascular?
Perguntar-se-á o que podemos fazer hoje, para além de procurar apoio médico regular, numa perspetiva de medicina preventiva, para conseguir ter uma maior longevidade e um envelhecimento saudável? Sabemos que, para isso, é particularmente importante ter uma alimentação saudável e praticar atividade física com regularidade. A vida sedentária acelera o envelhecimento biológico, enquanto um estilo de vida fisicamente ativo tem um efeito marcadamente benéfico. No que respeita à alimentação, destaco que a dieta mediterrânica é a dieta mais estudada e a que tem a melhor evidência de vantagens para a saúde. Esta dieta é rica em vegetais e fruta, pão de trigo ou outros cereais pouco refinados, azeite e peixe, sendo pobre em gorduras saturadas e rica em gordura monoinsaturada (azeite), ácidos gordos ómega-3 (peixe) e fibra alimentar. Diversos estudos recentes demonstraram os seus benefícios, nomeadamente na promoção do envelhecimento saudável. A adoção de um estilo de vida saudável é, pois, fundamental para assegurar com sucesso um envelhecimento ativo.
Hoje a prestação de cuidados médicos está organizada em termos de órgãos, assim, por exemplo, para um problema cardíaco vai-se ao cardiologista e ele consegue evitar o enfarte do miocárdio pelo controlo dos fatores de risco, como a pressão arterial e o colesterol. As doenças cardiovasculares estão a cair. Missão que está a ser cumprida pela Cardiologia, e isso é ótimo. Mas o problema é que o doente continua em risco de outras doenças, como o cancro, a demência, a hipertrofia benigna da próstata, a insuficiência cardíaca, etc.
No futuro vamos conseguir atuar com maior eficácia no envelhecimento, que é o maior fator de risco para todas as doenças. Nós iremos não só atacar o colesterol, a pressão arterial ou a diabetes, mas também os mecanismos de envelhecimento, o que irá ter um impacto profundo sobre todas as doenças. Será preciso uma abordagem mais holística em que os médicos de família, internistas e geriatras terão um papel fundamental, numa medicina que será holística, mais preventiva que curativa.
Maria João Garcia