Nasci antes do SNS, escapando a uma mortalidade infantil de 65 por mil; antes das vacinas generalizadas, apanhei sarampo, papeira, fui vacinado contra a varíola e sobrevivi à epidemia de cólera em Lisboa; como utente, usufrui dos primeiros centros de saúde e os hospitais do SNS evitaram que morresse precocemente; já como médico de família, lidei com a tuberculose e a heroína omnipresentes em Lisboa, a SIDA e a Covid-19; como dirigente sindical e da APMGF participei no processo que levou à Reforma dos Cuidados de Saúde Primários de 2005, vivi a utopia das USF (que privilégio!), a informatização dos serviços, mas também com as insuficiências dos ACES – Agrupamentos de Centros de Saúde, a morte à nascença dos sistemas locais de saúde, o definhar do hospital público português, a menorização da DGS.
Hoje, como presidente da Associação Nacional de Unidades de Saúde Familiar – USF-AN, enfrento nova mudança de paradigma com a generalização das ULS – Unidades Locais de Saúde (uma das evoluções que queríamos evitar por falta de evidência e pelo perigo de prevalecer uma lógica hospitalo e urgênciacêntrica) e a generalização do modelo B das USF (a principal reivindicação de anos da USF-AN pela sua ampla autonomia funcional no terreno, foco no trabalho em equipa e nos processos assistenciais e democracia interna).
Um verdadeiro choque de sensações contraditórias que obriga a um exercício de esperança no SNS e na sociedade portuguesa para encontrar, de novo, as melhores soluções.
Acompanhando o SNS até aos dias de hoje fica-se arrebatado com a atual mortalidade infantil de 2,6, as taxas de mortalidades evitável e tratável ou os internamentos evitáveis abaixo do que seria esperado pelas condições socioeconómicas e gastos do SNS, mas perplexo com a alta percentagem da população com limitações por problemas de saúde e as altas despesas de saúde out-of-pocket per capita em Portugal.
É a capacidade de superação, de mobilização de energia e de criatividade que é preciso continuar a libertar no SNS. As decisões estão a ser tomadas e cabe-nos fazer parte do processo, criticando, mas propondo alternativas e dando o nosso melhor. Tal como nos primeiros 44 anos, os recursos humanos são a peça-chave. Tem de se encontrar um novo equilíbrio entre vida pessoal / familiar e profissional com remunerações dignas em todo o SNS, enquadramentos para as USF (com um único modelo, o B) e os CRI atrativos e melhores condições de trabalho e de gestão das unidades.
Estas condições incluem um processo clínico único eletrónico, medida integradora dos cuidados, para que todos os profissionais de saúde registem na mesma aplicação, haja acesso aos dados completos de cada utente, podendo-se avaliar todas as interações no SNS.
É fundamental desbloquear os concursos de recrutamento para todos os profissionais, alguns parados há anos, porque não faltam só médicos. E aqui falamos também dos serviços de apoio como sejam unidade de apoio à gestão, aprovisionamento, logística, recursos humanos… essenciais ao bom funcionamento do sistema. Eliminar ainda a principal fonte de desgaste das equipas, implementando sistemas de substituições de pessoal em ausência prolongada. Não menos importante, é necessário melhorar as instalações contando com o Poder Local.
Ter um bom SNS nos próximos 44 anos depende muito da capacidade do governo, dos sindicatos, das associações profissionais, da sociedade, de cada um fazer parte da solução.