“Palavras leva-as o vento”. Todos nós já ouvimos esta expressão, que de alguma forma pode diminuir a importância da palavra, da comunicação. Nós não concordamos. As palavras importam. E muito. O conteúdo e a forma como falamos influencia os nossos doentes, os seus familiares, os nossos colegas e equipas. Em último caso, pode até influenciar a resposta aos tratamentos, quer sejam eles curativos, de contenção ou paliativos. Por isso, as dimensões do saber, do saber ser e do saber fazer são igualmente importantes para qualquer profissional de saúde.
A família é um grupo especial, que requer uma abordagem e uma forma de pensar específica. As terapias familiares surgiram a partir dos contributos da teoria geral dos sistemas e da cibernética, trabalhando inicialmente com populações mais desfavorecidas, como famílias com pacientes esquizofrénicos ou famílias com adolescentes delinquentes. Mudaram o nosso paradigma, passando-se da abordagem individual para a abordagem sistémica. Enfatizam conceitos como globalidade, como o todo sendo mais do que a soma das partes. Valorizam a circularidade, a atitude de cada um sendo alimentada pela dos outros e alimentando os outros e feedback, ou seja, a tendência do sistema para a homeostasia, para regressar ao equilíbrio anterior, sempre que se sente ameaçado por qualquer evento ou pela passagem duma a outra fase de ciclo vital.
Mas também é importante a mudança dentro do sistema, para que seja possível a sua necessária transformação e evolução. Assim acontece e poderemos pensar quando, entre nós, é diagnosticada uma doença crónica, progressiva e altamente limitante da funcionalidade dum doente e causadora de grande sofrimento, quer ao doente, quer aos familiares. Costumamos afirmar que são habitualmente vítimas da chamada “conspiração do silêncio”, um termo que surge da tradução literal do inglês.
Durante as nossas discussões em equipa, entendemos que este termo errado não reflete esta visão sistémica das famílias, correspondendo pouco ao que realmente se passa, na maioria dos casos que temos acompanhado. Por isso, resolvemos partilhar esta reflexão e opinião de que devemos deixar de usar o termo “conspiração”.
Conspirar implica um plano estruturado, com um objetivo primário ou secundário de prejuízo para alguém e de ganho para outra pessoa ou para uma causa, habitualmente numa situação de desigualdade de poder. Ora, o que nós observamos não é nenhuma conspiração. O que nós observamos, numa perspetiva sistémica, que tenha em conta a família como um todo, é que os familiares e cuidadores, os doentes e muitas vezes os profissionais de saúde, vivenciam um pacto, quando não é possível vivenciar o sofrimento psicológico e emocional, que uma doença grave provoca. Nesses casos, toda a comunicação fica afetada, limitando ou impedindo não só a comunicação do diagnóstico, como a comunicação das consequências e os desafios expectáveis com a evolução da doença.
O pacto de silêncio é uma forma de evitamento de contacto com os sentimentos presentes perante uma doença grave e perante a ameaça de morte e de perda de uma pessoa significativa, que deixa o doente com sentimentos de isolamento, de solidão e de ansiedade. Habitualmente, o que experimentamos na nossa prática clínica, é que as pessoas doentes querem saber tudo ou quase tudo, querem explicações para os seus sintomas e debilidade crescente, querem ter o poder de decidir e de se projetar no futuro, alterando os seus planos de vida de acordo com a nova realidade. Por vezes, querem pedir desculpa, querem ver pessoas com quem estavam em conflito, querem deixar textos escritos, querem gravar vídeos, querem deixar os últimos legados. E é importante que se exprimam verbalmente ou pela atitude, quando ainda o podem fazer.
Muitas vezes é um pacto silencioso, carregado de linguagem verbal e não-verbal, um silêncio feito de múltiplos sentidos e significados.
E não raras vezes parecem acreditar que o doente não sabe a doença que tem, que não sabe que está com uma doença progressiva e que o levará à morte, que o doente não quer saber ou não quer falar, que o doente até se poderá suicidar se souber… e o que acontece é o contrário: o doente sabe que está doente (na grande maioria das vezes sabe qual é a sua doença), sabe que vai morrer desta doença, evita falar disso, à semelhança com o que acontece nos familiares. Todos estão em sofrimento psíquico. O doente porque sabe que vai perder a relação que tinha com estes familiares, vai perder os projetos de vida que tinha. Os familiares porque vão perder esta pessoa, agora doente, altamente debilitada, que vem a perder capacidades e competências, até à morte, já anunciada, frequentemente num processo de luto antecipatório. Podemos experimentar alívio e atenuação do sofrimento, ao falar das nossas dúvidas, angústias e perdas que vão ocorrendo. Muitas vezes, as pessoas não querem ser apanhadas de surpresa com sintomas difíceis de controlar e a sua identificação precoce ajuda ao seu controlo mais célere e ao estabelecimento de novos planos de vida, de acordo com as novas expectativas.
Consideramos que deve ser utilizado o termo “pacto de silêncio”. Façam este exercício: numa família com este problema, numa próxima oportunidade, expliquem que o que estão a fazer é um pacto de silêncio. E pensem: se usasse a expressão “conspiração de silêncio”, será que a conversa iria ser mais ou menos fácil? As palavras importam. E muito.
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