Em conversa com o SaúdeOnline, o radiologista do Centro Hospitalar de Trás-Os-Montes e Alto Douro faz referência às mais-valias destes algoritmos no rastreio, diagnóstico e tratamento do cancro da mama. No seu entender, deve apostar-se nesta importante integração da IA nos sistemas do SNS.
Quais as mais-valias da IA no rastreio do cancro da mama?
As mais-valias são inúmeras em qualquer das etapas. No que respeita ao rastreio, os algoritmos conseguem melhorar a precisão e a nossa eficiência, sobretudo em relação à mamografia com várias soluções disponíveis para uso clínico, com certificação CE e FDA. Existem também projetos que se aplicam a outras técnicas de Radiologia, como a ressonância magnética ou a ecografia.
Tendencialmente, estes algoritmos vão diminuir o tempo necessário para nós, radiologistas, analisarmos as imagens e aumentarmos a nossa segurança ao fazê-lo.
O rastreio é um trabalho de alto volume. O número de senhoras que fazem mamografias, que têm depois de ser lidas, é grande. E estes sistemas podem ser um apoio.
Podem servir como sistema de triagem de casos negativos. Existem algoritmos treinados para assinalarem os casos onde existe 99,9% de certeza de que são negativos. Ou seja, não é necessária a leitura de dois radiologistas nestes casos considerados de baixo risco, apenas um pode confirmar os achados.
“Estes algoritmos vão diminuir o tempo necessário para nós, radiologistas, analisarmos as imagens e aumentarmos a nossa segurança ao fazê-lo”
Em Portugal, o rastreio é feito sempre por dois radiologistas que têm que concordar com o resultado, quer seja positivo, quer seja negativo. Em caso de discordância, o caso é discutido por um grupo de radiologistas, para se decidir o que fazer.
Algo também muito interessante, que está ainda em investigação, é a utilização destes modelos como parte da avaliação do risco oncológico, isto é, em vez de termos os padrões de risco tradicional – como a história pessoal e familiar -, os dados da mamografia vão permitir fazer um rastreio personalizado.
Se a mulher “A” tiver um tipo de padrão de mamografia que lhe aumente o risco de cancro, em vez de fazer uma mamografia de dois em dois anos, passa a fazer anualmente ou de seis em seis meses.
O mesmo se passa para as mulheres com baixo risco nesta avaliação do padrão mamográfico. É uma forma de conseguirmos personalizar o rastreio.
“É uma forma de conseguirmos personalizar o rastreio”
E no diagnóstico?
Na parte do diagnóstico devemos pensar em várias vertentes: melhorar a técnica de imagem; melhorar a aquisição da mamografia; garantir que a radiação é menor; ajudar no posicionamento das doentes; e ter a certeza de que a mamografia é feita sempre da mesma forma, com alta qualidade e avaliação automática da densidade mamária. O objetivo é reduzir a variabilidade que existe entre o radiologista A e o B de classificar os padrões de densidade mamária, sendo este um dos fatores de risco importantes na probabilidade de desenvolver ou não cancro da mama.
A meu ver, estes algoritmos terão ainda mais duas utilidades: vão ser “um segundo par de olhos”, ou seja, vão alertar-nos para áreas que considerem de maior risco; e vão ser também uma rede de segurança, uma vez que a tecnologia não fica cansada. Funciona de forma consistente, seja de noite ou de dia, independentemente do seu volume de trabalho.
É sabido que os humanos são propensos ao erro. Os erros médico e de diagnóstico são reais, devemos tentar combatê-los e a IA parece-me uma forma de os conseguirmos reduzir.
Além da Radiologia, também é importante falar da Anatomia Patológica, outra especialidade médica para a qual estes algoritmos têm vindo a ser desenvolvidos. Seja para ajudar os anatomopatologistas a diagnosticar os cancros nas biópsias ou a fazer quantificações de padrões ou de contagem de mitoses das divisões de células nas peças anatómicas.
São tarefas muito morosas, que tomam grande parte do seu tempo e que, desta forma, podem ser automatizadas. É possível aumentar a eficiência de um serviço de Anatomia Patológica utilizando este tipo de algoritmos.
“Os erros médico e de diagnóstico são reais, devemos tentar combatê-los e a IA parece-me uma forma de os conseguirmos reduzir”
E no tratamento?
Pode ajudar-nos no desenvolvimento de um plano de tratamento mais personalizado, através da análise de vários dados clínicos.
E a propósito desta pergunta, gostaria de fazer referência ao Projeto Cinderella, coordenado pela Prof.ª Maria João Cardoso, que é parte integrante do Grupo de Trabalho IA da SPS e trabalha na Fundação Champalimaud. Trata-se de um projeto europeu, abrangido pelo Programa Horizonte Europa Saúde 2021, que, através de um algoritmo de avaliação de imagens, neste caso fotografias, vai dar às mulheres a possibilidade de preverem o resultado estético da sua cirurgia. Vai permitir dar-lhes uma visão sobre o expectável resultado do seu tratamento. É um trabalho muito interessante!
Mas, voltando à área da Radiologia, no que respeita ao tratamento, a IA pode ajudar-nos a prever a resposta aos tratamentos. Existem algoritmos que, conforme o padrão do cancro na ressonância magnética, vão tentar estratificar as mulheres que vão responder melhor ou pior à quimioterapia antes da cirurgia.
Desta forma, é possível perceber se devemos ou não submeter as doentes aos efeitos secundários da quimioterapia, ou seja, saber quem não vai beneficiar com o tratamento, evitando que passe por efeitos desnecessários. Isto é muito interessante.
“Pode ajudar-nos no desenvolvimento de um plano de tratamento mais personalizado, através da análise de vários dados clínicos”
É seguro?
Segurança acima de tudo! Estes modelos passam por uma certificação na Europa, CE, e nos Unidos da América, FDA. É avaliada a forma como os algoritmos são treinados, qual é a sua eficácia na avaliação, na utilização clínica e que ganhos em saúde poderão representar.
Mas, obviamente, estes riscos estão atualmente a ser descobertos, sendo agora uma área de intenso debate e investigação. Não só os riscos da sua aplicação clínica, mas também os potenciais riscos éticos.
Estamos a introduzir uma nova tecnologia, sobre a qual ainda tentamos perceber as suas verdadeiras implicações na prática clínica diária. Por exemplo, há a possibilidade de os algoritmos serem enviesados.
Havendo imagens de uma maioria racial, étnica ou social, as populações sub-representadas podem estar a ser subtratadas ou subavaliadas por este tipo de algoritmos. É essencial treiná-los da forma mais diversificada possível.
Há ainda outro risco que é o facto de os algoritmos serem um pouco “opacos”, ao que chamamos a caixa negra ou a black box. Isto é, funcionam, mas não conseguem explicar passo por passo, porque é que chegam a determinada conclusão.
E, na saúde, gostamos sempre de ter uma perceção muito exata sobre todo o processo, pelo que é necessário tentarmos tornar esta caixa negra mais transparente.
“Segurança acima de tudo! Estes modelos passam por uma certificação na Europa, CE, e nos Unidos da América, FDA”
É preciso que os médicos façam algum tipo de diferenciação para acompanhar esta nova tecnologia?
Não só é preciso, como é essencial. É fundamental nos adaptarmos e nos diferenciarmos de forma a trabalharmos eficazmente com a IA. A Radiologia foi das primeiras áreas, se não a primeira, onde a IA começou a ser desenvolvida e aplicada em larga escala.
Em 2016 houve medo em relação à IA na Radiologia. Alguns postulavam que íamos ser completamente substituídos, num período temporal de cinco anos! O que não se verificou, estamos em 2023 e eu continuo a ter muito trabalho!
Com isto, percebemos que devemos abraçar, entender e tentar fomentar o uso dessas ferramentas, ou seja, os radiologistas não vão ser substituídos pela IA, mas os que utilizarem IA vão substituir aqueles que não a usam. Esta frase não é minha, é de um radiologista de Stanford, mas considero que espelha bem aquilo que devemos tentar tornar realidade.
Com o apoio destas novas ferramentas, melhoramos a nossa forma de trabalhar. Estão a ser feitos vários esforços, tendencialmente por parte das sociedades científicas internacionais – a Norte-Americana e a Europeia têm cursos estratificados e diplomas -, para, formalmente, desenvolverem um currículo dedicado à IA.
É necessária a aquisição de novos equipamentos? No caso do Serviço Nacional de Saúde (SNS), isto pode ser um problema?
Pode. O parque tecnológico do SNS tem grandes lacunas e é difícil fazer uma renovação. No entanto, muitas destas ferramentas têm a grande vantagem de poderem ser aplicadas em larga escala, através da sua integração na Cloud.
Ou seja, um computador dentro da Firewall, do sistema informático do hospital, é encarregue de receber os dados das doentes, fazer a sua anonimização e enviá-los para fora da rede hospitalar, para que sejam interpretados pelo algoritmo.
As empresas não têm acesso aos dados clínicos, nem ao nome de quem está a ser avaliado, depois os resultados são retornados ao hospital e o software volta a tornar estes dados desanonimizados, para os podermos integrar no nosso sistema informático. Parece complicado, mas demora menos de um minuto, não oferecendo um atraso no nosso funcionamento normal.
Desta forma podemos fazer a aplicação dos algoritmos em que contexto for, seja num hospital central ou periférico, e é uma forma de democratizar o acesso a esta ferramentas de alta qualidade, independentemente da zona do país ou do investimento feito.
Vai demorar muito tempo até que seja implementado de forma generalizada?
Ainda vai demorar. Portugal ainda está um pouco atrasado em relação à realidade norte-americana, assim como à europeia, sobretudo aos países da Europa Central.
No entanto, isto vai depender de inúmeros fatores, como o investimento, a aprovação regulamentar, a integração nos nossos fluxos de trabalho, entre outros. Porém, já começa a perceber-se o crescente reconhecimento destes potenciais benefícios da IA.
É provável que a adoção comece a ter, depois, um crescimento exponencial, que conduza a uma utilização mais generalizada nos próximos anos.
Não consigo dar um intervalo temporal, mas, tal como em todos os avanços tecnológicos e de saúde, quando existem estudos bem organizados e bem estruturados, que provam o valor deste tipo de soluções, os reguladores e os legisladores têm o papel de tentar colocar as melhores ferramentas ao cuidado da população.
De acordo com a minha experiência fora de Portugal e com o meu contacto com a realidade norte-americana, posso dizer que existem centenas de algoritmos e modelos comercializados para a aplicação em Radiologia. É um mundo!
Temos de perceber como os escolher, avaliar e validar para que funcionem e integrá-los na nossa prática.
A tendência é criar grupos de trabalho. As equipas de AI Governance, que são constituídas pelas várias partes interessadas – médicos, responsáveis pelo sistema informático, direções hospitalares, cientistas de dados, equipas legais e representantes de doentes -, deverão fazer este papel de escolher, integrar e avaliar continuamente a integração destes modelos no sistema informático do SNS.
É necessário que o SNS e o Governo tentem organizar-se, de modo a criarem equipas que permitam esta integração importante.
“Os reguladores e os legisladores têm o papel de tentar colocar as melhores ferramentas ao cuidado da população”
Quando fala em comprar estes algoritmos, está a falar de algo muito dispendioso?
Os modelos de financiamento e de pagamento destes algoritmos são múltiplos. Neste momento, a tendência é a de uma integração quase gratuita, sendo o pagamento feito por cada exame que é enviado para análise.
Considero que esta será uma porta aberta para tornar a utilização destes sistemas uma realidade. Realidade, essa, já existente, por exemplo, no mercado norte-americano.
Quando foi criado o Grupo de Trabalho Inteligência Artificial?
Foi criado em 2022, após a tomada de posse da presente Direção da SPS, na qual me incluo.
Eu e um conjunto de colegas tivemos a iniciativa de propor aos outros membros da Direção a criação deste grupo de trabalho, que foi aceite com entusiasmo. Foi-nos dada toda a ajuda que temos vindo a requisitar neste âmbito.
Quais são os objetivos?
O objetivo primordial é estudar e avaliar estas técnicas de IA aplicadas ao âmbito da Senologia, ou seja, às áreas da prevenção, do rastreio, do diagnóstico, do tratamento e do seguimento.
Para tal, identificámos ser necessário contar com representantes das várias vertentes: médicos das diferentes especialidades que lidam com cancro da mama, de forma a termos as várias perspetivas em relação à patologia; assim como profissionais e investigadores fora da área médica, uma vez que a IA é muito dominada pela ciência da computação.
Necessitámos de contactar investigadores de outras áreas, cientistas e engenheiros, para nos ajudarem a entender e a avaliar este tipo de algoritmos. Já o fizemos e, nesse contexto, realizámos a nossa primeira grande atividade organizada: a criação do capítulo final dos últimos consensos nacionais do cancro da mama, que foram publicados o ano passado, em 2022. É um capítulo inteiramente dedicado à IA.
Têm mais atividades a decorrer?
Sim, ao juntarmos elementos de vários âmbitos científicos, tornámos este grupo numa rede de partilha de conhecimento interpares, nacional e internacional. Estão a ser criados alguns projetos de investigação, fruto desta rede de contactos. De forma mais prática, a nossa próxima atividade é a criação de um workshop dedicado à IA na Senologia, durante as XX Jornadas de Senologia, que vão decorrer em outubro, no Algarve.
Queremos imprimir a esse workshop um aspeto fundamentalmente prático: apresentação de soluções de IA e aplicação clínica, com apresentação de casos clínicos. Vamos ter ainda uma componente teórica de base, ou seja, vamos tentar educar e aliciar os colegas para esta nova realidade nos cuidados de saúde.
Texto: Sílvia Malheiro
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