Entre vários assuntos, foram abordadas as questões da representatividade de género nesta subespecialidade, que conta com cerca de 12% de médicas, um número que acredita que venha a aumentar num futuro próximo. Outro dos assuntos foi o estado da arte da Cardiologia de Intervenção e os principais desafios que lhe são apresentados. Rita Calé Theotónio defende ser necessário um investimento nos Serviços de Cardiologia, de modo a acompanhar as inovações.
É a mais recente presidente da APIC e a primeira mulher a assumir a presidência da Direção desta Associação. Como é que encara este desafio?
É um desafio pessoal, mas sobretudo um serviço que presto num determinado período da vida à comunidade, neste caso, à Cardiologia de Intervenção. É reconfortante saber que esta não é uma missão solitária, integro uma equipa que muito me orgulha e que irá trabalhar comigo nos próximos dois anos, 2023 a 2025: Pedro Jerónimo de Sousa, enquanto secretário-geral, Carlos Galvão Braga, como tesoureiro, Rui André Rodrigues, na qualidade de presidente da Assembleia-Geral, e Joana Delgado Silva e David Neves, como vogais.
Como é que está esta “luta” por mais mulheres na Cardiologia de Intervenção?
Não posso classificar como “luta”, mas sim um processo natural, de mudança geracional. Ainda há uma significativa sub-representação de mulheres na Cardiologia de Intervenção, sobretudo da área médica, e muito poucas com cargos de coordenação, cargos académicos ou investigadoras principais de ensaios clínicos.
No entanto, nas últimas décadas tem-se assistido a um número crescente de mulheres nas faculdades de Medicina, e mais mulheres a ingressarem os serviços de Cardiologia. Por isso, é natural que no futuro próximo se assista a aumento do número de mulheres médicas na Cardiologia de Intervenção.
De qualquer maneira, concordo com o facto de haver ainda algumas barreiras que teremos de ultrapassar no futuro para que a sua representatividade seja ainda maior, como os problemas relacionados com a exposição à radiação. O medo da exposição fetal à radiação durante a gravidez pode levar a uma interrupção prolongada da carreira. Esta é muitas vezes apontada como a principal barreira para uma mulher que quer dedicar-se à área da Cardiologia de Intervenção. Existem alguns países da Europa, América do Norte, Japão e Austrália que permitem que as mulheres grávidas trabalhem no laboratório se monitorizadas de perto com um dosímetro abdominal para garantir que o feto não excede os limites de dose recomendados durante a gravidez.
Mas, Portugal ainda não trilhou este caminho, e as mulheres enquanto grávidas não podem trabalhar na área da Cardiologia de Intervenção.
Qual a percentagem de mulheres na Cardiologia de Intervenção portuguesa? E no mundo?
Apesar das mulheres representarem atualmente quase 60% dos estudantes de medicina na Europa, a representação das mulheres na Cardiologia de Intervenção continua baixa.
Em Portugal, em 2021, o número de mulheres com a subespecialidade em Cardiologia de Intervenção era de aproximadamente 12%. Mas, é possível que dentro de poucos anos, essa percentagem venha a aumentar, porque nesse mesmo ano, o número de mulheres jovens em treino para adquirir a especialização na área da Cardiologia de Intervenção igualou a dos homens.
“Em Portugal, em 2021, o número de mulheres com a subespecialidade em Cardiologia de Intervenção era de aproximadamente 12%”
Quais os objetivos a que se propôs para este mandato?
Para este mandato o objetivo da Direção da APIC é trabalhar em três pilares fundamentais: formação, investigação e relações nacionais e internacionais. A formação incide muito no desenvolvimento de iniciativas para os jovens cardiologistas, uma vez que é primordial cativar os jovens para a subespecialização nesta área da Cardiologia e assegurar que, naqueles que estão já em processo de treino, a sua formação seja de elevada qualidade clínica, técnica e científica e de acordo com as melhores práticas internacionais. É importante também manter os eventos como a Reunião Anual da APIC e VaP-APIC, que juntam a comunidade nacional de cardiologistas de intervenção, técnicos e enfermeiros que trabalham todos os dias nos laboratórios. São momentos privilegiados de formação e partilha de experiências.
Relativamente à Investigação, iremos trabalhar o Registo Nacional de Cardiologia de Intervenção (RNCI) que é um registo muito importante e valioso, uma vez que reúne os dados consecutivos das intervenções coronárias e valvulares realizadas no país. O coordenador nacional do RNCI para este biénio é o Prof. Dr. André Luz que nos ajudará a trilhar este caminho.
Manteremos e enriqueceremos as relações nacionais com sociedades nacionais e internacionais com áreas de interesse comum, nomeadamente com a Sociedade Europeia de Cardiologia de Intervenção (EAPCI).
A APIC foi criada em 2010, o que é que mudou na Cardiologia de Intervenção nacional desde essa data até então?
Relativamente ao trajeto da APIC, esta fez um caminho que passou pela sua profissionalização e projeção nacional e internacional. E tem contribuído de forma indiscutível para a formação dos profissionais envolvidos nesta área.
Na Cardiologia de Intervenção nacional em geral, desde 2010 até agora, destaco como importantes mudanças o esforço desenvolvido para melhorar o acesso aos cuidados, nomeadamente o maior acesso à angioplastia primária que é o tratamento de primeira linha no enfarte agudo do miocárdio, com a expansão destes programas de intervenção precoce em diferentes regiões do país como por exemplo no Alentejo. Embora ainda haja assimetrias de acessibilidade à via verde coronária no que respeita à região interior centro de Portugal Continental, houve na última década um aumento significativo dos procedimentos de angioplastia coronária, nomeadamente de angioplastia primária que são dos que têm maior impacto no prognóstico dos doentes.
Relativamente aos avanços tecnológicos, houve uma melhoria significativa dos dispositivos utilizados, uma maior disponibilidade de técnicas que auxiliam os procedimentos, como a fisiologia e a imagem intracoronária e novas áreas de intervenção para além da doença coronária. Tornou-se mais frequente a discussão multidisciplinar dos doentes. O conceito de Heart Team consolidou-se. A abordagem do doente com a colaboração de diferentes outras especialidades, como a Cirurgia Cardíaca, a Neurologia, a Cardiologia clínica, entre outras, permite fornecer cuidados personalizados e integrados com o objetivo de melhorar os resultados clínicos dos nossos doentes.
Por último, tem havido uma crescente procura de formação e certificação, sobretudo na geração mais nova, o que se reflete depois em cardiologistas de intervenção cada vez mais preparados e capacitados e com mais entusiasmo para trabalhar em equipa.
As inovações desta área têm sido muitas. Quais os principais desafios da Cardiologia de Intervenção Portuguesa?
Nos últimos anos, tem havido inovações muito marcantes na área da intervenção estrutural. Penso que um dos principais desafios da Cardiologia de Intervenção portuguesa é manter um crescimento nesta área que garanta a equidade e universalidade do acesso a este tipo de técnicas, independentemente da região do país. É necessário um investimento por parte da tutela para reestruturar os serviços de Cardiologia, fornecendo mais recursos para a intervenção percutânea estrutural. Quando falo em recursos, refiro-me aos equipamentos e aos recursos humanos. Ao nível de equipamentos, é necessário investir na aquisição de mais salas de hemodinâmica e mais técnicas de imagem avançada que permitam o diagnóstico da doença e planeamento das intervenções. E é necessário investir na formação de mais cardiologistas de intervenção e, dentro desta subespecialidade, permitir o acesso à formação em intervenção estrutural. É preciso que os centros com mais experiência e volume sejam centros formadores, geradores de conhecimento, para que outros centros possam iniciar algumas destas técnicas com segurança e eficácia. É benéfico que diferentes laboratórios de Cardiologia de Intervenção possam funcionar em modo de afiliação. No final, quem beneficia será sempre o doente.
“É necessário investir na aquisição de mais salas de hemodinâmica e mais técnicas de imagem avançada que permitam o diagnóstico da doença e planeamento das intervenções”
Texto: Sílvia Malheiro