Como surgiu a ideia deste livro?
Havia a necessidade de existir um livro de Língua Portuguesa que abordasse esta temática de um ponto de vista científico. A última, em português, data de 2002. Reunimos assim um conjunto de profissionais com experiência nesta área e que podem ajudar quem quiser aprofundar conhecimentos sobre consumo nocivo de álcool como médicos de família, psiquiatras, enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais, entre outros. Ao todo são 14 capítulos e 31 autores.
“As apresentações clínicas diferem bastante, porque há alcoolismo primário, secundário, doentes que bebem todos os dias, outros apenas ocasionalmente mas que têm um beber patológico”
O alcoolismo é um problema de saúde muito complexo. Quais os principais desafios na abordagem clínica?
São imensos! A doença em si é complexa, sendo multifatorial na sua origem. As apresentações clínicas diferem bastante, porque há alcoolismo primário, secundário, doentes que bebem todos os dias, outros apenas ocasionalmente mas que têm um beber patológico, não conseguindo parar. Não têm controlo sobre os consumos. Além disso, na nossa cultura normaliza-se o consumo quando o mesmo já é patológico. Às vezes, é muito difícil obter-se um diagnóstico, porque as pessoas nem sempre se queixam deste problema. Menos de 10% dos doentes com dependência do álcool pedem tratamento, ou seja, 90% não procuram ajuda. É uma doença complexa do ponto de vista etiológico e de diagnóstico e nem sempre se aposta no rastreio.
Qual é a incidência?
Há 5% de pessoas com dependência de álcool em Portugal. Para uma população de dez milhões, é um valor significativo.
“No caso das mulheres, o estigma desta doença é maior, porque o consumo de álcool é visto como algo mais normativo entre os homens. Bebem muitas vezes às escondidas…”
Qual o perfil do doente?
Em 80% dos casos são do sexo masculino e 20% do sexo feminino. No caso das mulheres, o estigma desta doença é maior, porque o consumo de álcool é visto como algo mais normativo entre os homens. Bebem muitas vezes às escondidas, negam este problema mais frequentemente e o sintoma mais comum é a depressão. O médico deve estar de sobreaviso e fazer o rastreio, porque, lembro, a sintomatologia e os tipos de consumo são muito variados. No caso dos homens costuma verificar-se uma predisposição genética e ambiental; nas mulheres, o mais comum é surgir em quadros depressivos.
Nos cuidados de saúde primários, que papel tem o médico de família?
Os médicos de família devem estar de sobreaviso e fazer o rastreio. Quando detetam consumos devem categorizá-los, para perceber se são patológicos. O rastreio ao consumo nocivo de álcool deve ser generalizado. Obviamente, nem sempre é fácil face à sobrecarga de trabalho, mas é preciso fazê-lo. Outra questão: a própria doença em si pode levar a pessoa à negação, por isso pode ser necessário comparar informações com os familiares. O médico de família tem um papel fundamental no diagnóstico da dependência do álcool, porque tem um contacto generalizado e aprofundado com o doente e a família e consegue assim conjugar as informações e ter melhor noção do que realmente se passa. Os psiquiatras também devem estar atentos, nomeadamente no caso da mulher com depressão.
Também temos os grupos mais vulneráveis, como os imigrantes..
Sem dúvida! Regra geral, são pessoas socialmente carenciadas, que vivem inclusive na rua, ou então têm uma boa capacidade económica e que consomem sobretudo em contexto de binge drinking. Alguns vão mesmo para a urgência em situação crítica.
“Os jovens são o grupo-alvo de eleição para campanhas, porque alguns consomem álcool de forma excessiva com apenas 13 anos”
Não deveria haver mais campanhas como acontece com o tabagismo?
Os jovens são o grupo-alvo de eleição para campanhas, porque alguns consomem álcool de forma excessiva com apenas 13 anos. Nessa idade, o cérebro do jovem não está totalmente desenvolvido e a maturação cerebral ainda está em curso. O álcool é muito tóxico e limita a capacidade de desenvolvimento dos jovens. A restante população também deve ser alvo de campanhas, contudo nem sempre é fácil.
A farmacologia e o apoio psicológico é importante, mas é preciso também haver sempre vontade da parte do doente?
É fundamental a pessoa querer mudar…Convém estar motivada, mas, obviamente, não é por não estar que não iremos fazer a intervenção com a pessoa, tentando motivá-la para o início do tratamento.