As doenças cérebro-cardiovasculares continuam a ser a principal causa de morte em Portugal. O que está a correr menos bem?
As doenças do aparelho circulatório constituem a primeira causa de morte em Portugal, como em muitos outros países do mundo desenvolvido. As doenças cérebro-cardiovasculares tiveram no ano 2021, em números absolutos, uma diminuição do número de óbitos que passaram de mais 35.000 no ano 2020 para 32.452 em 2021. Neste conjunto de doenças, continuaram a destacar-se as 9.613 mortes por AVC, ainda que este valor tenha representado uma descida de 16,0% em relação ao ano anterior. Registaram-se igualmente menos óbitos por EAM (3 977 óbitos), menos 2,4% do que em 2020.
Contudo em 2021, as doenças do aparelho circulatório continuaram a estar na origem do maior número de óbitos em Portugal (32 452), apesar da descida de 6,2% em relação ao ano anterior. Em termos relativos, representaram 25,9% do total de óbitos, menos 5,9% do que no ano anterior e menos 4,0 % do que em 2019.
Quando se fala no que não está a correr bem, não será bem assim pois temos vindo a assistir nos últimos 15 anos a uma diminuição da mortalidade, quer do AVC quer do EAM. Contudo, ainda temos que melhorar mais, obviamente. Temos assistido a enormes avanços nesta área, nomeadamente com a criação das unidades de cuidado intensivos coronários e de AVC, com a monitorização permanente e com a difusão inicial da terapêutica fibrinolítica, que veio minorar ou tratar essas patologias, permitindo novamente a circulação do sangue no vaso afetado. Posteriormente, tivemos a era da angioplastia primária e a trombectomia. Tudo isto tem contribuído para diminuir a mortalidade e a morbilidade destas patologias.
Atualmente, quais são as patologias cérebro-cardiovasculares mais preocupantes?
Objetivamente, o AVC, o EAM, a insuficiência cardíaca (IC), a patologia valvular degenerativa e a morte súbita são algumas das nossas preocupações.
“Estas doenças atingem, indiscutivelmente, mais as faixas etárias das pessoas mais idosas, embora se deva salientar que podem surgir em qualquer grupo etário”
Quais as faixas etárias mais afetadas?
Estas doenças atingem, indiscutivelmente, mais as faixas etárias das pessoas mais idosas, embora se deva salientar que podem surgir em qualquer grupo etário. Por isso é fundamental os clínicos estarem sempre atentos a estas patologias e não desvalorizarem os sintomas em qualquer grupo etário. Repare-se que, de acordo com dados do INEM, em 2022, a média de idade de quem necessitou de cuidados em Via Verde Coronária foi de 63 anos.
A criação das Vias Verde (AVC e EAM) foram importantes. Mas ainda há muitos doentes a deslocarem-se por meios próprios quando têm sintomas de AVC ou EAM?
As vias Verdes Coronárias e do AVC têm garantido enormes ganhos em saúde, contribuindo de forma consistente para a redução da mortalidade. Está demonstrado que o contacto para o 112 reduz o intervalo de tempo entre o início da avaliação, o diagnóstico e a terapêutica nas situações agudas. A população tem que ter noção que perante sintomas de AVC ou EAM não deve ir para a urgência pelos seus próprios meios. Deve chamar o 112. Temos tido conhecimento de paragens cardiorrespiratórias em ambulâncias, já muito perto dos hospitais, situações em que se os doentes fossem por meios próprios não teriam sobrevivido.
“Provámos na recente pandemia que se conseguiu trabalhar em conjunto para esclarecer a população sobre o novo vírus. É esse o caminho!”
Ainda relativamente às Vias Verde, ao fim de alguns anos, há alguma coisa que deva melhorar?
Acima de tudo, é preciso apostar sempre na literacia, difundir nos diferentes meios de comunicação os sinais de alarme das situações agudas. Provámos na recente pandemia que se conseguiu trabalhar em conjunto para esclarecer a população sobre o novo vírus. É esse o caminho! As pessoas precisam saber quais são os sinais e os sintomas de AVC e EAM. Dispneia súbita, dor no peito ou nos membros superiores, sudação, no caso do EAM; ou perda súbita de força num membro, voz arrastada ou desvio dos lábios no AVC. A par da educação para a saúde, é essencial que haja recursos humanos para toda esta logística. A criação de novas ferramentas também é crucial, como é exemplo a o recente registo clínico eletrónico do INEM, com ligação ao hospital, para, de uma forma rápida, aferir a gravidade da situação e agilizar o socorro.
Deve-se apostar ainda mais nos sistemas de informação pré-hospitalar e hospitalar?
Ainda é, de facto, uma área onde é necessário maior investimento, pois os sistemas não estão integrados. A ferramenta do INEM permite de uma forma ágil avaliar a situação e contribuir para que o doente seja direcionado para o local mais adequado. Foi um passo importante.
Após o diagnóstico e o tratamento imediato, continua-se a ter dificuldades na reabilitação. Por que razão ainda não se aposta tanto nesta vertente, começando-se logo no internamento?
A reabilitação após um EAM é crucial para ajudar os pacientes a recuperarem a sua função cardíaca, a controlarem os fatores de risco cardiovasculares e melhorarem a sua capacidade funcional e qualidade de vida. Embora a reabilitação cardíaca (RC) seja amplamente reconhecida como uma componente essencial do tratamento em múltiplas doenças cardiovasculares é, não raramente, subutilizada por médicos e doentes.
“No contexto da doença aguda, o cardiologista assistente está mais focado no tratamento de fase aguda e frequentemente esquece, ou desvaloriza, a importância da referenciação (…) ao programa de RC”
E porquê?
Existem várias razões para tal. No contexto da doença aguda, o cardiologista assistente está mais focado no tratamento de fase aguda e frequentemente esquece, ou desvaloriza, a importância da referenciação e da sua recomendação para a adesão do doente ao programa de RC.
Outra razão é a falta de conhecimento da importância da RC por parte dos pacientes e seus familiares. Nas consultas de seguimento, essa recomendação vai depender de hospital para hospital. De uma maneira geral, os serviços de Cardiologia/ Neurologia/Medicina Interna estão organizados para que, após as situações agudas, os doentes sejam seguidos pelo menos durante um ano. Existe claramente um défice de unidades de RC no Serviço Nacional de Saúde, daí estar-se a trabalhar para mudar esta realidade. As vantagens da RC são enormes, quer na reintegração nas rotinas diárias quer na prevenção de outros eventos cérebro-cardiovasculares.
E nas consultas de follow-up existem as condições necessárias para que se aposte na educação para a saúde ou falta tempo e recursos humanos (nutricionistas, psicólogos)?
São, de facto, necessários mais apoios e recursos humanos, tais como psicólogos e nutricionistas. Todos estes profissionais ajudam a combater a iliteracia e a corrigir os fatores de risco cardiovascular, tais como diabetes, hipertensão, dislipidemia, tabagismo, obesidade, etc.
Também deveriam ser dadas condições aos cuidados de saúde primários (CSP) para que pudessem apostar mais na prevenção e no diagnóstico precoce?
Sim, não se pode esquecer a importância dos CSP, pois assumem, na minha opinião, um papel primordial na promoção da saúde cardiovascular. É nos CSP que se pode realizar o rastreio de risco cardiovascular, de modo a detetar a doença ainda em fase assintomática, por exemplo.
“Apesar de tudo, Portugal tem um SNS, do qual nos devemos orgulhar e que muito tem contribuído para que as populações nos últimos 40 anos”
A promoção da saúde e a prevenção da doença são dois aspetos sempre complexos. Estando à frente do Programa Nacional, o que é mais desafiante ou limitativo quando se procura avançar com projetos concretos?
Muito mais do que tratar as doenças, devemos preveni-las. É fundamental apostar em ações de promoção da saúde, sensibilizando para a relevância da adoção de hábitos de vida saudáveis. Estas iniciativas devem começar logo cedo, na escola, mas também devem chegar às empresas, entre outros locais, para se esclarecer a população sobre os benefícios de não fumar, de se praticar exercício físico regular, de uma alimentação saudável, de se evitar excesso de sal, gorduras e açúcar, etc.
Detetar e controlar eficazmente a hipertensão arterial, dislipidemia e a diabetes são prioridades. Com estas simples atitudes evitaríamos muitas mortes e limitações físicas decorrentes de AVC ou EAM. E mesmo para o Estado haveria menos custos e poder-se-ia utilizar certas verbas para outras situações.
Quanto ao que é mais desafiante… Pode-se dizer que é o tentar contribuir, nem que seja em pequenos passos, para a diminuição da mortalidade e da morbilidade cardiovasculares. Mas é muito limitativo, muitas vezes, queremos avançar com propostas e não o conseguirmos com a maior brevidade. Apesar de tudo, Portugal tem um SNS, do qual nos devemos orgulhar e que muito tem contribuído para que as populações nos últimos 40 anos tenham atingido ganhos importantes de vida.
Texto: Maria João Garcia
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