Na introdução deste texto, permitam-me começar pelo fim: a Inteligência Artificial (IA) não substituirá os médicos humanos. Este esclarecimento prévio tem o demérito de eliminar o suspense, mas, por outro lado, permite já reforçar a ideia de que os médicos humanos são insubstituíveis. A IA pode tomar o lugar de decisores humanos em alguns cenários específicos, mas não conseguirá substituir integralmente os prestadores de cuidados de saúde de carne e osso.
Dito isto, penso que, no futuro próximo, a IA intervirá em praticamente todos os atos médicos. Esta previsão não se funda apenas na observação atenta do desenrolar dos acontecimentos, mas também (e sobretudo) no reconhecimento dos inúmeros benefícios que a IA pode trazer para a prestação de serviços de saúde, como destacado por vários estudos.
Se assim é, cabe-nos agora (e já vamos tarde) estabelecer qual deve ser o standard of care (as leges artis aplicáveis) na Medicina assistida por IA. Esta é a única forma de colher o maior benefício possível da IA, acautelar a segurança do paciente e prevenir potenciais cenários de responsabilidade médica.
Para começar, é necessário que os corpos profissionais e as associações científicas estabeleçam as regras da arte no uso da IA, atendendo às particularidades técnicas de cada especialidade médica. Esta é uma função que cabe essencialmente aos profissionais de saúde.
Porém, não esqueçamos que o quadro legal vigente condiciona decisivamente o standard of care em matérias como, por exemplo, a salvaguarda do sigilo médico, o consentimento informado ou a Medicina em equipa. Eis que surge uma dificuldade neste domínio: no campo jurídico estamos ainda um pouco perdidos, dada a novidade desta tecnologia, o seu carácter disruptivo e a insuficiência das normas existentes. O quadro legal é lento a acompanhar as mudanças. A jurisprudência nesta matéria é incipiente. A doutrina divide-se em várias opiniões, por vezes pouco fundamentadas.
Será que o médico deve (ou tem que) informar o paciente de que o diagnóstico foi feito por um sistema de apoio à decisão que opera por meio de IA? Que mais deve constar da informação a prestar ao paciente? Que fazer se o próprio médico não dispuser da informação necessária, como sucede quando a IA carece de transparência e de explicabilidade? Estará o médico obrigado a seguir a recomendação da IA no diagnóstico ou na opção terapêutica? Quando pode o médico discordar da IA? Será que o uso da IA quebra o vínculo de confiança que deve sempre existir entre médico e paciente?
As questões são muitas. As respostas são também potencialmente muitas, mas poucas aquelas que se fundam em certezas jurídicas. Em termos de litigância, este é um risco iminente para os profissionais de saúde, como em regra sucede nos primeiros tempos após a introdução de uma nova tecnologia. Porém, que esta zona cinzenta não amedronte nem desencoraje a progressão da IA na Medicina. Os médicos são insubstituíveis, mas o médico que teime em ignorar a IA será facilmente substituído.