Escrevo, neste gabinete, que já me parece uma segunda casa. Tenho desenhos de crianças nas paredes, material médico espalhado na secretária, panfletos e folhetos no armário. As minhas gavetas são um caos que já não consigo organizar. Falta-me espaço e falta-me tempo. E é isto que é ser interna de Medina Geral e Familiar: falta de espaço e de tempo. Falta espaço nas agendas, falta espaço no consultório, falta espaço dentro de mim.
Os utentes trazem-me os seus problemas como uma lista de compras (literalmente trazem uma lista escrita à pressa no dia antes ou meticulosamente elaborada em preparação para consulta) “é a tensão alta, é o ombro que dói, é este sinal que cresceu, é o meu filho que me preocupa, é o patrão que não perdoa…”. E eu tenho vinte minutos para ajudar no que posso, para perceber os seus receios, para desconstruir conceitos errados, para fazer prevenção primária e secundária e terciária e (já vamos em quantas?), vinte minutos para fazer escuta ativa e a consulta em sete passos.
E o Sr. Augusto, no auge dos seus 87 anos, demora cinco minutos a tirar o casaco para eu poder medir a tensão e, já demorou dois a chegar ao consultório, e, um minuto a dizer-me como é bom ver-me sem máscara e mais 30 segundos a tirar os exames do saco e demora mais dois minutos a encontrar “as caixinhas da medicação, que eu não consigo saber isto de cor, Sra. Doutora, pareço uma farmácia ambulante”.
E o Sr. Augusto sai com a tensão arterial medida, com os exames necessários pedidos, com o peso e a frequência cardíaca registada, com a prescrição renovada e com uma consulta marcada. Sei que a comida cai bem, que o intestino é regular e que, quando faz médios esforços, não sente dispneia. Sei que as pernas não incham, que “as urinas andam bem, só me levanto uma vez por noite para me aliviar”. Mas, quando o Sr. Augusto volta, passados dois meses, numa consulta que ele agendou com olhos tristes e mãos a tremer fala-me de como não dorme há meses “e cada vez está pior e eu já não vejo a luz ao fundo do túnel, só quero ir para onde a minha falecida esposa está, menina… desculpe! Senhora Doutora!” E quando pergunto porque não me falou disto na consulta anterior a resposta é simples “Eu queria menina, mas vi que estava com pressa e não quis incomodar!”.
O coração aperta-se-me e a consciência pesa-me. No dia da consulta do Sr. Augusto estava atrasada e o meu orientador não estava. A secretária ligou-me várias vezes – “a Dona Vitória precisava mesmo de lhe dar uma palavrinha!” e “o Sr. António perdeu a receita e agora já não tem medicação, pode voltar a imprimir?”. Além disso, tinha uma apresentação para preparar para o congresso da semana a seguir e tinha mesmo de responder àquele e-mail da Comissão de Ética, senão o trabalho de investigação não anda para a frente e eu estou no 4.º ano e ainda não publiquei nada e tenho de escrever o procedimento do VIH, não sei se isto conta neste ponto do currículo, quanto tempo vou demorar a colher os dados, já estarei perto das 1500 consultas, tenho de estudar, já não me lembro de nada, a minha mãe faz anos para a semana, calha na minha noite de urgência e não vou poder ir ao jantar….
Mas, desta vez, tinha o meu orientador no gabinete ao lado, mandei uma mensagem: “vou-me atrasar, o Sr. Augusto precisa de tempo”. E fiz aquilo que um verdadeiro médico de família deve fazer, uma consulta com empatia, com tempo e com espaço dentro de si.
Feliz Dia Mundial do Médico de Família a todos os colegas que com tão pouco fazem tanto!