Ainda me lembro bem da Prova de Seriação de Acesso às Especialidades Médicas. Alguém se tinha lembrado de juntar dois cursos (Policlínicos 2 e 3) e só havia vagas para 25% dos candidatos. Era grande a probabilidade de ficar de fora e muitos dos meus colegas acabaram mesmo por se converterem em tarefeiros no Serviço de Urgência. Alguns, que não se conformaram em ser Médicos indiferenciados, propuseram-se a vários Serviços como Internos Complementares da Ordem dos Médicos, não tendo qualquer remuneração. Era como se pagassem a sua formação com o trabalho que faziam no Hospital.

A motivação da escolha do Serviço era apenas a que garantisse uma formação mais sólida. Queríamos ir para onde a fama da escola fosse maior, mesmo que a exigência dos formadores causasse receios fundados. O tempo do Internato de Especialidade era de dedicação total ao Hospital. Queríamos absorver tudo o que valesse a pena e ficávamos até desoras a fazer registos clínicos, que eram escalpelizados pelo Chefe de Serviço às 8h da manhã. Só depois da titulação como Especialista nos lembrávamos da colocação, que raramente era possível no hospital de formação.

As Urgências já tinham há 35 anos os mesmos defeitos de hoje. Vinham muitos doentes sem razão clínica e, como não havia Triagem de Manchester, às vezes era o porteiro que alertava para a necessidade de observação mais rápida. As noites eram vividas com ansiedade, habitualmente com a presença física permanente de dois Internos Gerais e dois Internos de Especialidade, apesar de haver um Especialista a fazer 24h, que não queríamos incomodar. Mas, nesse tempo, ainda estavam integrados nas Urgências dos Hospitais Distritais os Colegas de Medicina Geral e Familiar. Na generalidade dos Hospitais, podíamos contar com todos os Internos de Especialidade nos primeiros dois anos da sua formação, antes de rumarem às suas áreas específicas.

Até ao ano de 2020, todas as vagas para Internato de Especialidade eram ocupadas. Havia Especialidades mais procuradas, que encerravam logo no primeiro dia, e outras que permaneciam disponíveis mais algum tempo. Ninguém enjeitava a oportunidade de entrar no SNS.

A 25 de novembro de 2023, constatamos que 438 Médicos recusaram qualquer vaga no SNS, preferindo o trabalho bem remunerado da tarefa no SU, ou mudarem de vida, e dizer adeus à Medicina. As Especialidades em que se verificou menor taxa de ocupação foram aquelas que exigem mais esforço assistencial (Medicina Geral e Familiar 77,8% e Medicina Interna 41,9%). A Medicina Interna sempre teve os candidatos com as melhores e as piores notas de acesso. Havia quem escolhesse por convicção e outros por falta de alternativa, mas nenhuma vaga sobrava! Vi muitos daqueles sem grande crença na Medicina Interna renderem-se ao encanto da observação do doente global e às novas formas do exercício da Especialidade, tais como a Hospitalização Domiciliária, a Medicina Perioperatória, os Cuidados Intermédios, os Cuidados Paliativos, as Doenças Hereditárias do Metabolismo a as Doenças Autoimunes.

Agora, das 248 vagas postas a concurso, só 104 foram ocupadas. Por outro lado, olhando para as vagas preenchidas em primeiro lugar, passou a interessar pouco a garantia duma boa formação, sendo as condições de trabalho menos exigentes a principal razão da escolha do Hospital.

Para a nova geração de Médicos, a possibilidade de terem um horário de trabalho menos absorvente, com tempo protegido para a vida pessoal, estudo, investigação e ensino é absolutamente determinante!

A remuneração é um argumento inquestionável para justificar a saída do SNS, mesmo nesta fase, sem qualquer Especialidade. Ficar apenas como tarefeiro no Serviço de Urgência é incentivado pela política atual de valorização excessiva desse trabalho, que permite serem mais rentáveis duas escalas por semana no SU do que o trabalho de um mês inteiro no Serviço.

A situação gravíssima a que chegamos, tende a tornar-se ainda pior, porque atinge as duas especialidades basilares do SNS, a Medicina Geral e Familiar no Ambulatório e a Medicina Interna no Hospital.

É preciso um “toque a rebate” do Governo, da Direção Executiva do SNS e da Ordem dos Médicos. É crucial rever o nosso modelo de Serviço de Urgência, que tem problemas conhecidos a montante e a jusante, que não se resolvem aumentando-lhes o espaço físico, nem com mais tarefeiros. Para já, seria bom que todos entendessem que o Serviço de Urgência não é um problema exclusivo da Medicina Interna. Haveria algum alívio se voltássemos a ter os Internos das Especialidades na Urgência Geral nos primeiros dois anos da sua formação, antes de rumarem à sua área específica.

Os Colégios de Especialidade têm vindo a reduzir o tempo da permanência dos seus Internos de Formação Específica na Urgência Geral. Os Internos de Medicina Interna estão cada vez mais sozinhos. Era justo que o SU fosse encarado como um problema do Hospital e por isso a resposta terá de ser dada por todos os Serviços, com equidade. Era um sinal importante, que contribuiria para o bem-estar do jovem Médico candidato a Internista, antes que ele fuja de vez!

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