Citando Abel Salazar e João Lobo Antunes, respetivamente, “o médico que só sabe de Medicina, nem de Medicina sabe” e “o único pensamento fundador da Medicina é o altruísmo”. Fazendo uso duma analogia entre a relação médico-doente e os cordões que entrelaçamos ao atar um sapato, o nó se for mal feito desfazer-se-á com facilidade.

Por outro lado, caso se faça um nó com veemência a mais ter-se-á dificuldade em desunir os atacadores. Daqui se infere que o médico, para sua própria proteção emocional, deve tratar com empatia e respeito o doente, mas manter sempre um certo distanciamento que afaste uma relação de muita proximidade na esfera do doente. O médico pode ser humanista sem que haja um apego emocional desproporcionalmente elevado ao doente.

Naturalmente, esta importante abordagem humanista para com o doente pode ficar comprometida quando nos deparamos com clínicos exauridos, dado o número elevado de horas extraordinárias, turnos desregulados sem devido descanso compensatório, falta de condições laborais e remuneratórias, com afetação subsequente da vida pessoal e familiar. Estes fatores, acrescido ao pouco tempo disponibilizado ao médico para passar com o doente, pesam na prestação de cuidados e na formação de jovens alunos e de médicos internos.

Para salvaguarda dos doentes e do Serviço Nacional de Saúde (SNS), espera-se que o Ministério da Saúde saiba cuidar de quem cuida e atenda às reivindicações dos médicos. Sendo o cenário atual o de urgências encerradas ou na iminência de tal acontecer e o de mais de 1 600 000 utentes sem médico de família atribuído e, como explana o artigo 64.º da Constituição da República Portuguesa, “incumbindo prioritariamente ao Estado garantir a proteção e acesso à saúde de todos os cidadãos”, deve o Exmo. Sr. Presidente da República intervir de forma implacável nesta matéria e, em último cenário, caso nada seja feito proactivamente pelo Governo para resolução dos problemas sistémicos e crónicos do SNS, dissolver a Assembleia da República.

Retomando a relevância da humanização na Medicina, cada doente é uma pessoa única, excecional, com dor orgânica e psicossomática que, num ambiente hospitalar com falta de visitas de familiares e amigos e que considera hostil por natureza, necessita de se sentir acarinhado e acompanhado nas suas inquietações, momentos de alegria e de maior melancolia.

Não deve o médico, como apela por vezes o ensino médico nas faculdades, cingir-se ao protocolo fixo e rígido de interrogatório da anamnese/história clínica e exame objetivo. Deve, pois, contemplar-se verdadeiramente a vertente holística e humana do doente, que tem uma estrutura pessoal, familiar e profissional, medos e incertezas.

Em suma, numa era em que a inteligência artificial (IA) dá os primeiros passos em muitas áreas e em concreto na Medicina, urge uma aposta na valorização das competências humanas, éticas, sociais e empáticas, muitas vezes esquecidas e desvalorizadas. São estas qualidades que nos diferem positivamente da IA. Esta poder-nos-á substituir a nós, médicos, como máquinas de diagnóstico, tratamento e memorização, mas nunca conseguirá criar significado nem congregar em si mesma as várias vertentes do médico humanista.

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