Os hospitais privados registaram um crescimento em diferentes valências. Mas registou-se uma descida de 22,2% das cirurgias SIGIC. Na sua opinião, porquê, tendo em conta as listas de espera no Serviço Nacional de Saúde (SNS)?

São, de facto, bons resultados que se medem pelo aumento da capacidade de prestação de cuidados de saúde. Estamos a falar de 8 milhões de consultas externas, 1 milhão e 300 mil urgências, 235 mil grandes e médias cirurgias e um aumento na ordem dos 10% de meios complementares de diagnóstico. Das 235 mil cirurgias, somente 11500 foram vales-cirurgia. Porquê? Não me compete a mim fazer qualquer comentário em concreto…

Esse aumento também demonstra que há mais portugueses com planos/seguros/subsistemas de saúde…

Sem dúvida! Tem-se verificado um aumento da procura por cuidados de saúde quer no privado quer no público. O mesmo acontece noutros países europeus. Em Portugal, este acréscimo também se deve muito ao envelhecimento da população e ao alargamento desses planos/seguros/subsistemas a preços mais acessíveis.

“Quando se diz que um milhão e 600 mil portugueses não têm médico de família, uma parte tem, mas no privado”

Nos últimos tempos tem-se também notado mais respostas em Medicina Geral e Familiar (MGF) e em Geriatria. O caminho é mesmo esse: ter cuidados de proximidade?

Sim. A tendência é esta e não há volta a dar. Há anos que os teóricos da saúde defendem a articulação entre diferentes níveis de cuidados: primários, hospitalares, continuados, paliativos… O hospital é cada vez menos um local e mais uma forma de organização de saúde. Existe, de facto, um número significativo de portugueses que tratam tudo o que é saúde no hospital, incluindo MGF. Quando se diz que um milhão e 600 mil portugueses não têm médico de família, uma parte tem, mas no privado.

Considera que o privado já é uma primeira opção e não tanto a alternativa quando o SNS não consegue dar resposta?

Todos os estudos indicam que a principal razão pela qual se escolhe o privado é por uma questão de acessibilidade. Mas também é verdade que tem aumentado a liberdade de escolha: não querem apenas um cardiologista mas o cardiologista X e querem ir ao hospital X ou Y. Contudo, o nosso sistema de saúde é beveridgiano – a coluna vertebral continua a ser o SNS, que é universal e tendencionalmente gratuito. Desta forma, obviamente não há propriamente um direito de escolha. Daí que se diga que o acesso se prenda com o financiamento e não com a propriedade dos hospitais. Veja-se o exemplo do SIGIC… O doente não sabe quanto se gasta com o vale-cirurgia… E não tem que saber! O mesmo acontece com as PPP: os utentes precisam e querem cuidados de saúde, não sabendo quais os custos associados. A APHP defende que a população deveria ter uma verdadeira capacidade de escolha, independentemente de necessitar de ter uma segunda cobertura.

“A APHP defende que o SNS deve existir e ser fortalecido, mas para sobreviver não é nos termos que foi concebido há mais de 40 anos”

Mas o SNS deve manter-se universal e tendencionalmente gratuito?

A APHP defende que o SNS deve existir e ser fortalecido, mas para sobreviver não é nos termos que foi concebido há mais de 40 anos. Está desatualizado face à evolução da sociedade. Os problemas do SNS não são novidade e não se devem apenas à pandemia. Os relatórios de análise da Comissão Europeia e da OCDE de 2019 já questionavam a sustentabilidade do SNS. É uma preocupação! Esta sustentabilidade prende-se com a questão de financiamento, que tem de ser robustecido, inclusive para uma boa relação com outros prestadores!

Muitos dos recursos humanos do SNS estão a ir para o privado…

Essa é a discussão, mas o problema dos recursos humanos existe em Portugal e nos restantes países da Europa. Mesmo no privado não temos médicos suficientes em determinadas especialidades como Anestesiologia, Pediatria, Psiquiatria, entre outras. Felizmente, não sentimos ainda no nosso país a escassez de enfermeiros…. Existem questões que são comuns e temos que trabalhar em parceria, daí que, no ano passado, nos tenhamos juntado à Associação Portuguesa de Desenvolvimento Hospitalar e à Associação Portuguesa dos Administradores Hospitalares num consórcio que irá permitir realizar o Congresso Mundial dos Hospitais no final de outubro, em Portugal. Recursos humanos, transformação digital ou sustentabilidade são problemas comuns, por isso não faz qualquer sentido existir uma “guerra” entre setores.

A saúde está refém da ideologia política? No caso das PPP, o Tribunal de Contas considerou que se trata de um modelo mais eficiente que as EPE, mas mesmo assim só resta uma…

É incontestável que durante uns anos vivemos uma disputa ideológica…Na legislatura que terminou em 2019, a última lei a ser aprovada foi a Lei de Bases da Saúde, que esteve bloqueada no Parlamento por causa do artigo referente à ligação entre público e privado. No caso concreto das PPP, perdeu-se, destruiu-se um instrumento importante para a sustentabilidade do SNS e até de acessibilidade. O relatório de maio de 2021 é absolutamente taxativo: as PPP permitiram ter quatro hospitais a tempo e horas para o Estado, cumprir os termos do contrato, poupanças de centenas de milhões de euros para o erário público, uma boa capacidade assistencial. Há uma série de instrumentos que deviam ser estendidos a todo o SNS, nomeadamente inquéritos de satisfação aos profissionais de saúde. Não existe nenhum motivo para que o escrutínio que se fez a estes quatro hospitais não possa ser aplicado com proveito aos restantes.

“Os hospitais privados não são o sistema convencionado, não são apenas um apêndice do SNS”

Acredita que anda possamos vir a ter mais PPP?

Não, pelo menos nos termos que existiram. O que está em causa é algo mais profundo: é a relação de confiança entre o Estado e os operadores privados. É importante para a sustentabilidade do sistema encontrarmos a forma de nos relacionarmos uns com os outros. Todos temos um papel a desempenhar! O público continuará a ser a coluna vertebral do sistema, mas o privado também tem um papel essencial a desempenhar. Os hospitais privados não são o sistema convencionado, não são apenas um apêndice do SNS. Representamos um terço da capacidade hospitalar do país.

No caso dos doentes oncológicos, tendo em conta que o privado encaminha para o púbico os doentes quando acaba o plafond, não deveria haver uma maior articulação para estes casos mais graves?

A Entidade Reguladora da Saúde publicou um documento sobre a transferência de doentes para garantir a articulação. Mas há outra questão inerente: a evolução dos seguros de saúde. Há uns anos, não havia oferta suficiente para a área oncológica, mas hoje essa realidade tem mudado. Há pelo menos três grandes companhias de seguros com ofertas. De facto, temos que caminhar para uma maior cobertura de internamento e seguindo todo o ciclo de vida do segurado. Além disso, é preciso esclarecer a população das diferenças que existem entre plano e seguro de saúde, que não têm a mesma cobertura. No caso das terapêuticas, nos privados tem havido maior acesso, contrariamente ao SNS, contudo não podemos esquecer que o Infarmed tem que ser mais diligente na aprovação destes fármacos.

“Esta tentativa de envolver as maternidades privadas parece-me que é uma forma nebulosa de desviar a atenção de outras questões”

Relativamente às maternidades. Fala-se do possível encerramento de algumas maternidades privadas. O que pensa sobre esta questão?

Não entendo, sinceramente. Os portugueses sabem que desde há vários meses que tem havido problemas com maternidades do SNS. O mesmo não tem acontecido com o privado. Esta tentativa de envolver as maternidades privadas parece-me que é uma forma nebulosa de desviar a atenção de outras questões.

Mas no privado são feitas mais cesarianas a pedido da mulher. Nesse caso não se deveria mudar essa realidade, já que a boa prática é optar pelo parto normal sempre que possível?

Não sou médico… Boas práticas? Há cerca de um ano, os ingleses retiraram o rácio das cesarianas da lista de critérios de avaliação de qualidade da saúde materno-infantil e até dos serviços… Nos EUA, também o fizeram. A Medicina evolui. Além disso, a decisão é do médico e não acredito que o faça com base em critérios políticos ou administrativos.

O que podemos esperar da hospitalização privada nos próximos tempos?

Um maior investimento, com alargamento da rede hospitalar. A hospitalização privada também é um pilar no setor da saúde.

Texto: Maria João Garcia

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